O governo do condado de Kerr, no Texas, onde uma enchente devastadora matou ao menos 80 pessoas, recusou há anos a implantação de um sistema moderno de alerta contra inundações, revela o jornal New York Times em reportagem.
RONALDO SCHEMIDT/AFP/METSUL
A medida poderia ter reduzido o número de vítimas na tragédia e evitado o desastre no acampamento de crianças inundado. O episódio atingiu em cheio a região do Rio Guadalupe, conhecida por abrigar acampamentos de verão com dezenas de crianças. Segundo as autoridades, 28 das mortes foram de menores de idade.
Apesar de alertas anteriores sobre os riscos extremos de enchentes repentinas, autoridades locais deixaram de investir em sensores de nível d’água, sirenes e sistemas integrados de comunicação de emergência.
A decisão, tomada ao longo da última década, foi baseada principalmente em argumentos de custo. Em 2017, uma proposta de 1 milhão de dólares para instalação de um sistema de alarme foi rejeitada. O orçamento anual do condado gira em torno de 67 milhões de dólares.
“Podemos fazer todo o monitoramento que quisermos, mas se não passarmos a informação à população rapidamente, nada disso adianta”, disse na época o então comissário Tom Moser, em entrevista agora relembrada pelo New York Times.
A região de Kerr County está no coração do chamado “Flash Flood Alley”, um corredor geográfico do Texas onde o relevo acidentado e o solo rochoso favorecem enchentes violentas e repentinas.
O risco é particularmente alto durante tempestades intensas, comuns no verão. Ainda assim, o condado se manteve apenas com um sistema informal de alerta, baseado em ligações de líderes de acampamentos rio acima para acampamentos rio abaixo. Sirenes e sensores, usados em outras partes do estado, foram descartados como “extravagantes”.
De acordo com atas de reuniões da câmara de comissários (equivalentes a vereadores) obtidas pelo New York Times, a proposta de instalar um sistema moderno de alerta chegou a ser discutida após as mortes em uma enchente no município vizinho de Wimberley, em 2015, onde 10 jovens de um acampamento religioso morreram.
Wimberley, ao contrário de Kerrville, adotou um sistema integrado de sensores e comunicação, com ajuda de agências federais. Kerr County tentou obter um subsídio estadual, mas não conseguiu os recursos.
No início deste ano, em maio, o tema voltou à pauta em uma reunião orçamentária, mas não houve decisão concreta. O juiz do condado — cargo equivalente ao de prefeito no sistema texano — Rob Kelly, admitiu que os moradores resistem a novos gastos. “Os contribuintes não querem pagar por isso”, afirmou.
Avisos chegaram tarde ou não chegaram
Durante a enchente de 4 de julho, as mensagens de emergência foram enviadas por SMS. Mas muitos moradores sequer as viram. Sujey Martin, moradora de Kerrville há 15 anos, contou que foi acordada por um alerta às 2h da manhã, mas voltou a dormir. “Nunca foi tão ruim assim, então não dei muita bola”, disse ela ao New York Times.
Louis Kocurek, de 65 anos, vive na comunidade de Center Point, a cerca de 15 quilômetros de Kerrville. Ele só foi avisado da gravidade da situação pelo genro, por volta das 6h30. O alerta oficial chegou apenas às 10h07 — horas depois de ele já estar ilhado em casa com outras 11 pessoas. O riacho ao lado de sua propriedade subiu 15 metros em apenas 15 minutos.
Outros moradores relataram não saber da dimensão do desastre até que parentes ligaram. Linda Clanton, professora aposentada, foi avisada pela irmã às 8h30. No dia seguinte, foi até o parque Louise Hays, às margens do rio, para ver de perto os danos.
Disse não ter certeza de que sirenes teriam feito diferença. “Somos todos muito espalhados nessas colinas, no meio das árvores. Uma sirene aqui no centro da cidade não seria ouvida por quem mora mais longe”, afirmou.
Especialistas apontam falha estrutural
A professora Avantika Gori, da Universidade Rice, lidera um projeto financiado pelo governo federal para melhorar a resiliência a enchentes em áreas rurais do Texas. Segundo ela, a falta de sistemas de alerta é generalizada em condados pequenos, que têm pouca arrecadação e dependem de subsídios estaduais ou federais.
“Se o condado tivesse um sistema de alerta em funcionamento, estaria muito mais preparado”, disse ela em entrevista por e-mail.
A pesquisadora afirma que mesmo sistemas simples, com sensores de chuva e de nível de rio, podem salvar vidas — especialmente se forem acompanhados de mecanismos de comunicação eficazes, como sirenes e alertas via rádio e TV.
Em lugares com sinal de celular fraco, os avisos por SMS não são suficientes. Segundo Gori, o grande problema é a escassez de dados em regiões rurais: “Estamos praticamente cegos quando se trata de identificar áreas vulneráveis”.
O estado do Texas tem um plano de infraestrutura hídrica com cerca de US$ 54 bilhões em projetos mapeados. No entanto, só uma fração do montante — US$ 669 milhões — foi liberada até agora. Em contraste, a legislatura estadual aprovou neste ano US$ 51 bilhões em cortes de impostos sobre propriedades.
Kerr County chegou a considerar, junto com a Autoridade do Alto Rio Guadalupe, a possibilidade de pedir financiamento pelo Fundo de Infraestrutura de Enchentes do Texas. Mas desistiu ao saber que o fundo cobriria apenas 5% do custo total do sistema proposto.
Uma lição para o país inteiro?
Para Tom Moser, agora aposentado, a tragédia mostra que as escolhas feitas anos atrás tiveram consequências trágicas. “Acho que poderia ter ajudado muita gente”, lamentou. “Muita coisa deve sair desse episódio. Isso deveria ser uma lição aprendida.”
O juiz Rob Kelly, hoje a principal autoridade política do condado, disse a jornalistas no fim de semana que “não era hora de especular” sobre falhas na resposta à enchente. Prometeu uma revisão completa do sistema de preparação e resposta a desastres.
Enquanto isso, voluntários e equipes de resgate seguiam buscando vítimas desaparecidas ao longo do rio. No domingo à tarde, outro alerta de emergência foi disparado: mais uma cheia era esperada, com alto risco de inundação nas mesmas áreas já afetadas.
A demora histórica em agir pode ter custado dezenas de vidas. A omissão de investimentos preventivos, como mostrou o New York Times em sua investigação, expôs os limites da gestão local em enfrentar eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.
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