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22/07/2025

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A arte me salvou de um roteiro imposto, diz Jô Freitas


Quando saíram de Paulo Afonso, cidade localizada a 470 km de Salvador, capital baiana, a ideia dos pais de Jô Freitas era encontrar melhores condições de trabalho. Essa não é uma história inédita: ela se mistura entre os sonhos de muitas famílias migrantes que ainda chegam a São Paulo na esperança de um caminho com mais possibilidades.

Filha do meio entre três irmãs, a menina  desembarcou na cidade em meados dos anos 1990, com apenas cinco anos, indo morar no Itaim Paulista, em São Paulo. Além de ter um lugar para morar, roupas para vestir e comida na mesa, essa criança tinha necessidade de histórias, principalmente as vindas dos livros.

Hoje, aos 36 anos, ela habita o mundo das palavras: tornou-se Jô Freitas, poeta e escritora indicada ao Prêmio Jabuti, um dos mais tradicionais do Brasil — já vencido por nomes como Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu e tantos outros que marcaram a literatura e a poesia brasileiras. 

“Meus pais não são letrados, e isso coincide com a história de alguns professores que também foram para a educação porque seus pais não tiveram essa oportunidade”, contou a poeta em conversa com o Porvir. Ela é uma das convidadas do Festival Encontro com o Porvir

Direito à poesia

Para Jô, a imaginação é um direito das crianças. Também uma necessidade. “Como eu fui uma criança que não teve esse direito, por vir de uma história em que meus pais eram da roça e vieram para a periferia, lidando com a urgência de suprir necessidades como a fome e outras demandas sociais, não havia muito espaço para a imaginação”. 

“Fui uma criança que tinha a necessidade de se colocar, de expressar opiniões. Mas, por vir de uma família sertaneja, havia uma relação emocional muito distante, pouco carinhosa, com pouca escuta. Era uma criação mais dura, de uma aridez que o sertão traz”

Fui silenciada, desencorajada a me expressar. Na Bahia, tem um termo para crianças assim: “abilolada”, “avoada”. Esse era quase o meu sobrenome, porque eu imaginava demais. Tinha lampejos de criatividade, inventava histórias, brincava de teatro. Mas fui criada para trabalhar, como meus pais”, diz.

O pai de Jô, ao chegar em São Paulo, virou pedreiro. A mãe, assim como a avó, as tias e a irmã mais velha, doméstica. Em um de seus poemas preferidos, ela manifesta o desejo de ser diferente, e a vida como poeta seria uma vingança premeditada, uma fuga do roteiro preestabelecido. 

Eu escrevo por vingança 

Porque minha avó é empregada doméstica, minha mãe é empregada doméstica, minha tia é empregada doméstica, minha irmã é empregada doméstica 

E eu? Eu sou poeta. 

Mas em meus ouvidos, tem uma voz de um patrão dizendo assim: 

Ei menina 

Em tempos de guerra 

Que está fazendo com papel e caneta na mão? 

É em vão 

Quero só ver quando quiser roupa sapato ou pão 

Vai empunhar o tal canetão?

[Trecho de “Escrevo por vingança”, de Jô Freitas] 

Escrita como arma e escudo 

O encontro com as artes, para a poeta, a salvou de reviver esse mesmo roteiro. Antes de se tornar escritora, Jô se envolveu com o teatro teatro. Aos 13 anos, passou a fazer aulas e descobriu autores e autoras que carrega consigo até hoje. 

“Fui atriz até 2018, mas hoje não me identifico mais como tal. Eu me dedico inteiramente à literatura, embora traga muito do teatro na minha performance de recitar poesia — a ‘cenopoesia’, onde escrita, oralidade e corpo se encontram”, conta. Foi pelo teatro que conheceu os saraus periféricos,, espaço onde a poesia se revelou a ela e da qual não mais se desvencilharia. 

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Sua identidade como escritora consolidou-se com a leitura de autoras como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Miriam Alves. “Tornar-me leitora me permitiu ser escritora”, diz. 

“Quando escrevo uma poesia, não estou apenas contando minha história. Trago ficção, mas também algo que só eu poderia dizer daquele jeito.” 

Foto: Dani Souza

Olhando a vizinhança deste continente, Jô tem especial carinho pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, que empresta a ela “um olhar poético sobre o cotidiano”. Mas é a partir do seu lugar de mulher preta, nordestina e periférica que ela constrói e expressa sua arte.

“As questões raciais, de gênero e de território são inevitáveis no meu processo de escrita. Sempre observo de onde a pessoa vem, qual é seu sotaque, porque isso dá ritmo ao texto. Mesmo que eu não nomeie diretamente o racismo ou a opressão de gênero, quero que o leitor sinta a história por meio  da sua própria vivência. Lemos com nossas feridas abertas, e cada leitura é única.”

Quando a poesia ganhou voz? 

Qual foi o papel da escola em sua trajetória? O período em que esteve em sala de aula não foi muito poético para Jô. Todas as dimensões que hoje impulsionam sua escrita foram, na escola, fonte de repressão e desestímulo.

“Tem escolas que são asas e outras que são gaiolas, como dizia Rubem Alves. Acho que fui muito podada e minha escola foi uma gaiola. Foi lá que aprendi a neutralizar meu sotaque, a me vestir diferente, a me colocar de outro modo para me encaixar”, conta.

Questões de raça e cultura africana e afro-brasileira – hoje mais presentes devido à Lei  10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas – não tinham grande espaço. Isso também incomodava Jô, que tanto queria saber sobre o que tinham a dizer sobre suas culturas ancestrais.  

Apesar das lembranças negativas, a experiência escolar serve hoje como propulsora de ações no campo educacional. Atualmente, Jô contribui com formações em letramento racial em diversas escolas. 

“Minha crítica é mais institucional do que aos professores, porque sei o quanto eles são sucateados. E foi justamente por essa falta que resolvi atuar nas escolas públicas, onde passo boa parte do ano, para contribuir com a formação racial e social”, destaca. 

Por uma escola que reconecta

Em tempos de redes sociais e tecnologia, a poesia também merece seu espaço na busca por uma escola mais diversa, ampla e alinhada com o que há de mais humano. E que tipo de escola é essa? 

Uma escola que se reconecta é a que ouve as histórias dos alunos e considera o território onde está inserida. Cada região tem um imaginário próprio, e a escola precisa respeitar e criar a partir disso. Reconectar é também pensar na responsabilidade pelas histórias que ainda virão”, diz a poeta. 

Entender quem é o aluno que faz parte dessa escola é, para Jô, uma característica relevante para a escola contemporânea. O deslocamento que viveu durante sua educação básica deixou-lhe marcas dolorosas do que significa estar na escola. No entanto, hoje, esse mesmo sentimento a impulsiona a ocupar esses espaços, para que outras crianças, especialmente meninas negras e nordestinas,  saibam que também podem ser poetas, se assim desejarem.

Entre as ações de incentivo e popularização da poesia, desde 2014 ela realiza o Sarau Pretas Peri, que ocorre nas periferias de São Paulo. Seu livro de contos “Goela Seca”, finalista do Prêmio Jabuti, integra apresentações e oficinas da turnê “Arte com a palavra”, realizada por todo o país, misturando poesia e artes cênicas. 






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