Sancionada em janeiro deste ano, a lei 15.110/2025 impõe limitações ao uso de dispositivos eletrônicos portáteis, como celulares, em escolas públicas e privadas de educação básica, abrangendo períodos de aula, recreio e intervalo.
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Apesar das restrições previstas na lei, o uso pedagógico desses dispositivos pode ocorrer, desde que seja supervisionado por professores — conforme texto escrito ipsis litteris, sem pôr ou tirar qualquer vírgula. Entretanto, desde sua sanção, escolas em todo o território nacional têm criado uma espécie de “terrorismo” atrapalhado e mal interpretado, caminhando no sentido da proibição das tecnologias em sala de aula, mesmo para fins educacionais, além de promover o desmantelamento de equipes de tecnologia educacional sob falsas prerrogativas.
É preciso fazer coro e lembrar que, independentemente da existência dessa lei, o ensino do letramento digital no Brasil nunca foi uma prioridade de fato. Sim, há a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) da computação em vigor, que enfatiza a necessidade dessa área de conhecimento e de docentes especializados nas instituições de ensino, além de oportunizar a implementação de uma área curricular que promova a instrumentalização dos alunos nos variados eixos temáticos previstos nesse documento. Contudo, não é isso que ocorre na prática.
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No contexto público, professores com licenciatura em computação denunciam editais de contratação desconectados da realidade, ausência de recursos e falta de formação adequada. No contexto privado, a área de tecnologia educacional muitas vezes não passa de um mero conto de fadas. Frequentemente, ela é interpretada apenas como um suporte para professores que não dominam tecnologia, sem qualquer vínculo com um projeto pedagógico robusto, que possibilite ao aluno desenvolver competências e habilidades distintas para o mundo digital.
O currículo enquanto território de disputa
Esse cenário é mais comum do que se imagina e reflete uma disputa curricular que interessa apenas a quem realmente acredita que a educação digital é um meio essencial para a formação dos alunos. Saberes relacionados à cultura digital, inteligência artificial, pensamento computacional e toda instrumentalização necessária para que crianças e adolescentes adquiram conhecimento e maturidade nesse universo tecnológico cada vez mais presente em nosso cotidiano são cruciais e não devem ser sabotados.
Não é por acaso que a escola enfrenta frequentemente uma queda de braço na organização dos seus componentes curriculares. Disciplinas como matemática, português, ciências, geografia e história sempre terão espaço e vantagem em relação às demais, por serem base para muitas outras áreas e para a vida. Contudo, em um mundo cada vez mais digital e tecnológico, o que acontece com a não inclusão de uma disciplina tão importante e atual no século 21? A não previsão dessa disciplina na grade curricular não seria uma contramão do bom senso coletivo? Qual a dificuldade de reservar uma hora-aula semanal para ela?

A resposta talvez não seja simples. E, ao mesmo tempo, afirmar que o ensino da tecnologia pode ser incorporado apenas por meio de projetos pontuais em disciplinas tradicionais também não é. Em uma realidade na qual a geração Z enfrenta dificuldades até mesmo para usar comandos simples como “ctrl + C” e “ctrl + V” (atalho para copiar e colar), e o mercado de trabalho já percebe que jovens recém-formados no ensino médio desconhecem funções básicas da computação, não seria essa uma oportunidade para dar significado à aprendizagem por meio de projetos pedagógicos consistentes?
São muitas perguntas que parecem não ter a devida atenção no campo educacional, que se preocupa mais com o vestibular clássico e tradicional do que com a qualidade da experiência de crianças e adolescentes no ambiente online.
O desafio da desigualdade e da infraestrutura
Diante da avalanche de lançamentos tecnológicos e da crescente transformação dos postos de trabalho, ignorar o currículo de tecnologia nas instituições educacionais é caminhar lado a lado com a desigualdade. Sim, muitas vezes há um frenesi e um assédio constante para a implantação de projetos desarticulados com a realidade local. Contudo, isso apenas evidencia a falta de formação, condições de trabalho, conexão, recursos adequados e especialistas para debater e implementar esses projetos de forma consistente, aspectos que não podem ser ignorados.
A última pesquisa TIC Educação destacou que, apesar dos avanços na formação de professores para o uso das tecnologias digitais na educação, que passou de 58% para 73%, “a proporção de escolas com acesso à Internet para os alunos na sala de aula caiu de 70% para 60%”. Esse dado pode estar relacionado às medidas restritivas adotadas pelas instituições de ensino, fenômeno que já existia dois anos antes da sanção da Lei nº 15.100/2025, demonstrando um endurecimento precoce no uso de tecnologias.
Além disso, é fundamental considerar o agravamento da desigualdade pelo não fornecimento de dispositivos que promovam o acesso às tecnologias digitais nas escolas. O mesmo estudo evidencia:
“Os dados sobre a presença de dispositivos para uso dos alunos apontam ainda as desigualdades entre os contextos escolares, como entre instituições localizadas em áreas rurais (39%) e urbanas (75%); públicas (59%) e particulares (74%); de menor (30% entre as instituições com até 50 matrículas) e maior porte (93% entre as instituições com mais de mil matrículas). Tais dados também evidenciam as desigualdades de oportunidades entre os estudantes de diferentes níveis socioeconômicos.” (pág.68).
Políticas públicas e iniciativas privadas
A necessidade de políticas nacionais que incentivem a conectividade, ofereçam recursos adequados e atualizados é urgente, assim como projetos de sustentabilidade pedagógica que evitem o sucateamento desses recursos a médio prazo. Muitas vezes, são fundações e iniciativas privadas que adotam escolas para fornecer equipamentos e formações, o que revela a incapacidade diretiva dos estados e municípios para promover e acompanhar a implementação contínua de projetos educacionais em tecnologia. Ou seja, a terceirização da responsabilidade torna-se, muitas vezes, a saída mais fácil.
Há, sim, a necessidade urgente de implementar uma área de tecnologia educacional que ofereça formação global para os alunos.
No caso das instituições privadas, ainda que o saldo soe positivo conforme demonstrado no estudo, na prática a área de tecnologia educacional tende a ser vista mais como um produto a ser comercializado, ou seja, laboratórios novos, salas de aula inovadoras com lousas interativas, Chromebooks com conexão rápida, do que com a ideia de currículo propriamente dito.
Esse aspecto contribui para a captação de matrículas, pois cria a impressão de uma oferta integrada e vantajosa. Porém, ao analisar a situação com mais atenção, percebe-se que a realidade é diferente: faltam aulas específicas, projetos concretos e professores com formação adequada. Há, sim, uma necessidade urgente de implementar uma área de tecnologia educacional que ofereça formação abrangente para os alunos.
Oportunidades para o ensino da tecnologia
Casos de cyberbullying, fake news e violência digital são apenas algumas das situações para as quais a escola precisa estar preparada, não só para orientar, mas para ensinar os alunos a denunciar e interpretar informações por meio de fontes confiáveis. Materiais da SaferNet, por exemplo, possibilitam ao professor aplicar jogos, promover mesas de discussão e analisar com os alunos cenários diversos com personagens próximos da realidade.
A IA Generativa, não tão recente assim, tem nos mostrado que pode ser um caminho interessantíssimo para ensinar aos alunos como fazer uma boa pergunta e refinar solicitações por meio de engenharia de prompt (técnica para elaborar comandos ou instruções ao sistema). Estimular o aluno a pesquisar por meio da IA, utilizá-la para interpretar dados e comparar referências acadêmicas com foco na qualificação do resultado são caminhos interessantes.

Projetos maker mão na massa desenvolvidos por meio de prototipações digitais ou físicas oferecem um repositório de conhecimento único, passível da atuação colaborativa com registro do percurso de aprendizagem em apresentações distintas. Aluno e professor podem juntos utilizar a metodologia do design thinking para aplicar um processo qualificado no que diz respeito às soluções-problema encontradas, ao mesmo tempo em que o aluno realiza o registro em programas de apresentação como Microsoft PowerPoint ou Canva para comunicar o seu resultado para os demais colegas.
O uso de smartphones para registro em contextos sem conexão, como gravação de áudio (podcast), vídeo (vídeocast) e fotos, é uma alternativa importante. Em seguida, esses recursos podem ser editados diretamente em aplicativos nativos dos próprios dispositivos. Em contextos com conectividade, a pesquisa online, download de aplicativos educacionais diversos e direcionados para cada disciplina ou projeto e criação de comunidades de aprendizagem também colaboram para potencializar o contato com esses recursos para além do que usualmente o usuário, neste caso aluno, sempre o utiliza.
Essas são apenas algumas das oportunidades que podem ser desenvolvidas em sala de aula a partir da docência de professores de tecnologia educacional, cuja supervisão e direcionamento de projetos tornam o uso dos recursos tecnológicos viável dentro da Lei apresentada.
E o mais importante, são projetos que podem ocorrer sob um currículo específico da tecnologia educacional, devido a sua aderência. Um professor polivalente ou especialista em outra área de conhecimento talvez não tenha o domínio necessário para atuar nesse caminho sozinho e aqui residem duas oportunidades:
- As temáticas apresentadas acima podem ser realizadas unilateralmente por um professor de tecnologia com o objetivo de instrumentalizar os alunos nos recursos digitais disponíveis e atuando como um formador de cultura digital.
- A área de tecnologia educacional e o seu professor podem convidar professores de outras áreas de conhecimento para desenvolverem juntos projetos, cuja atuação se dará de forma interdisciplinar e complementar.
Neste sentido, é preciso que a escola evite a todo custo desqualificar a área de tecnologia educacional reduzindo-a um simples time de especialistas em Adobe Photoshop, Microsoft Excel e criadores de páginas web. Um projeto de formação de professores em tecnologia a partir de um mapeamento de escuta ativa, acompanhado de um currículo para alunos com uso de recursos de dispositivos móveis e projetos de aprendizagem contínuos é o que de fato faz sentido na escola.
Conclusões
A falta de aprofundamento em tecnologia enquanto área de conhecimento colabora para uma sociedade desconectada da realidade, refém de interpretações individualistas do mundo, sem qualquer reflexão crítica, construtiva e colaborativa sobre toda e qualquer interação sobre seus recursos, independente de tela, plataforma ou conectividade.
É ideal que a mediação desse conhecimento ocorra de forma propositiva e sistematizada, por meio de planejamento, sob a cooperação de equipes especializadas em tecnologia educacional.
Esses profissionais devem fomentar o aprendizado de tecnologias diversas, baseados em um currículo formatado e curado com referências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) da computação, e explorar sua transversalidade com outras áreas do conhecimento.
A atuação ampla, direcionada e flexibilizada entre todos os atores educativos é um fator importantíssimo para que o aluno amplie sua visão de mundo e compreenda que a tecnologia para além do entretenimento, é uma ferramenta que irá lhe dar suporte para toda a sua vida pessoal e profissional. Nesse contexto, cabe à escola parar de buscar referências no passado e começar a repensar a sua relevância no futuro.

Angelo Costa dos Santos
Ângelo Costa é educador e especialista em tecnologia com mais de 20 anos de experiência na interseção entre pedagogia e inovação. Mestre em Educação: Currículo (PUC-SP), com pós-graduação em Computação Aplicada à Educação e MBA em Gestão Escolar (USP), além de formação em Pedagogia (Estácio). Atua como coordenador de educação digital, integrando cultura digital, maker, sustentabilidade e gamificação ao processo de aprendizagem.
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