Quem visita a Ocupação Ana Mae Barbosa no Itaú Cultural, em São Paulo (SP), talvez não imagine que a trajetória da pioneira da arte-educação no Brasil começou com uma recusa à própria ideia de ser professora. Nascida no Rio de Janeiro (RJ) em 1936 e criada no Recife (PE), Ana Mae foi incentivada por sua avó, Dona Marinita, a seguir o magistério. Na escola preparatória para o concurso público, aos 18 anos, teve logo no primeiro dia de aula uma experiência marcante. O professor pediu que os alunos escrevessem por que escolheram ser professores e Ana Mae foi honesta ao relatar que via a educação como instrumento de repressão.
Na manhã seguinte, Ana Mae foi surpreendida pela escuta atenta de seu professor, Paulo Freire. Em uma conversa de duas horas, Freire – que ainda não era reconhecido por sua metodologia de alfabetização de adultos – apresentou-lhe outra visão da educação: libertadora e transformadora. Começava ali uma grande amizade e uma guinada definitiva em sua vida profissional.
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Na mesma época, Ana Mae conheceu Noêmia Varela, fundadora da Escolinha de Arte do Recife e, posteriormente, diretora da Escolinha de Arte do Brasil, grande influenciadora do ensino da arte criativa. Ana Mae logo se tornou estagiária, professora e diretora na instituição. Em paralelo, formou-se na Faculdade de Direito do Recife.
Em 1967, mudou-se para São Paulo, lecionou em escolas e fundou a Escolinha de Arte de São Paulo, que funcionou até 1971. Em 1974, ingressou como professora na ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), após mestrado em arte-educação nos Estados Unidos. Diante da pouca valorização da área no Brasil, também concluiu doutorado no exterior, tornando-se, em 1978, a primeira doutora em arte-educação do país.
Aos 88 anos, Ana Mae Barbosa, pioneira da arte-educação no Brasil, segue influente e inovadora. Nesta entrevista, ela revisita sua trajetória, comenta a exposição com mais de 300 objetos de sua vida e obra, e fala sobre seu novo livro para a educação infantil. Entre memórias e reflexões, destaca a Abordagem Triangular – que articula fazer artístico, leitura de imagens e contextualização – e reforça o papel essencial da arte na formação de crianças, educadores e da sociedade.
➡️Nos dias 28 de junho e 5 de julho (sábados), às 14h, o Itaú Cultural promove ativações artísticas e pedagógicas em parceria com a Organização Paulista de Arte-Educação, que homenageiam o legado de Ana Mae e baseiam-se na Abordagem Triangular, proposta de ensino de arte sistematizada por ela.
Porvir – Como foram suas experiências nas escolas públicas no início da carreira? Você foi alfabetizadora?
Ana Mae Barbosa – Sim, logo que passei no concurso público nos anos 1950, em segundo lugar, escolhi trabalhar em uma escola muito difícil, caindo aos pedaços, no bairro dos Alagados, no Recife. Era uma escola onde os alunos não tinham nem pátio para o recreio e comiam na própria sala. Eu via um grande potencial naquela meninada. No primeiro ano como professora substituta, que foi o ano em que estudei com Paulo Freire, consegui alfabetizar ou semialfabetizar todos os alunos. Minha preocupação era que eles pudessem ler coisas práticas, como os nomes dos ônibus e itens de supermercado. Eu não deixava que apenas copiassem sem entender, e usava métodos como papel carbono para o dever de casa, permitindo que as crianças rasgassem o papel com borracha, desde que respondessem às perguntas. A diretora me concedeu a honra de ficar apenas na alfabetização nos anos seguintes, e eu mantive o recorde de não deixar ninguém sem saber ler.
Porvir – Como você se aproximou das artes em sala de aula?
Ana Mae Barbosa – Quando passei a dar aulas em uma escola pública no Recife, comecei também a aplicar e desenvolver minhas ideias. Combinei a abordagem freiriana, usando palavras-chave da história dos próprios alunos para incentivá-los a contar e inventar histórias, com o método de Eloísa Marinho, que ligava alfabetização à contação de histórias. Apesar de eu ter tido dificuldades com o desenho geométrico no curso normal, na prática eu “entupia” os meninos de propostas de desenho (risos). Anos depois, reencontrei uma ex-aluna que me disse que o que mais lembrava da escola era justamente o quanto desenhavam, e como isso havia ampliado sua percepção visual. Minha primeira publicação, “Teoria e Prática Artística”, em 1975, já trazia o embrião da abordagem que viria a ser chamada de Abordagem Triangular – o que mostra que a integração da arte à minha prática e ao meu pensamento aconteceu cedo, de forma espontânea.
Leve a Abordagem Triangular para a sua aula |
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A sequência didática “Entre traços e versos: artes visuais e literatura negra” explora desenho, leitura, interpretação e escrita, promovendo a educação antirracista. Utiliza obras de artistas negros no Brasil e a abordagem triangular de Ana Mae Barbosa, alinhada à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e à Lei 10.639/2003, que valoriza a história e cultura afro-brasileira. Baixe gratuitamente aqui. |
Porvir – Em linhas gerais, o que é a Abordagem Triangular em arte-educação?
Ana Mae Barbosa – A Abordagem Triangular é uma forma de ensinar arte que vai além de apenas fazer arte. Ela se baseia em três pilares: fazer arte, apreciar a obra de arte e contextualizá-la. A ideia de que o ensino de arte não era só fazer já estava “rolando pelo mundo”. Minha contribuição foi acrescentar a contextualização, influenciada por Paulo Freire. A necessidade de ver a arte conscientemente foi influenciada pela minha experiência na Inglaterra e é uma ideia pós-moderna. A abordagem veio de maneira orgânica, a partir das coisas que fui aprendendo e vivenciando, com influências de Paulo Freire, John Dewey e experiências no exterior. Inicialmente, houve um mal-entendido, e em muitas escolas minha abordagem era reduzida a mera cópia, o que me frustrou, mas depois vi em teses acadêmicas implementações muito boas e me reconciliei com ela.
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Porvir – A Abordagem Triangular é relevante para alunos e professores…
Ana Mae Barbosa – Exatamente. Ela é muito importante também para o professor. Experimentei a aplicação em diferentes contextos: no MAC (Museu de Arte Contemporânea), onde fui diretora entre 1986 e 1993 com obras originais; na prefeitura, com pôsteres/representações; e no Rio Grande do Sul, com vídeos sobre artistas. Criei cursos e extensões na USP para aplicar essa abordagem com professores, focando nos fazeres (fazer, leitura da imagem, contextualização). Vi que não dava para separar esses aspectos.

Porvir – Como sua formação em Direito influenciou sua visão da educação?
Ana Mae Barbosa – Inicialmente, fui para o Direito por pressão familiar, depois de ter desistido da Medicina. Foi uma experiência horrível no início, com muito preconceito contra mulheres. Eu queria sair, mas Paulo Freire me aconselhou a não desistir, dizendo que o Direito me serviria em qualquer profissão porque dá um treino hermenêutico. Anos depois, em São Paulo, ao sistematizar a Abordagem Triangular e acrescentar a contextualização, percebi a importância desse “treino hermenêutico” que o Direito me proporcionou para a interpretação e contextualização da arte.
Inspiração e aprendizado |
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Foi Paulo Freire quem lhe emprestou o primeiro livro de John Dewey (sobre a ideia da arte como experiência), a indicou para o Instituto Capibaribe e, anos depois, participou de uma palestra na USP organizada por Ana, em 1980, cujo registro está na exposição. Um dos eixos da mostra destaca justamente essas influências, a partir da pergunta que guiaria toda sua prática: “Quem educará os educadores?” |
Porvir – Em paralelo, você acompanhou de perto quando a educação artística se tornou obrigatória no Brasil, na década de 1970…
Ana Mae Barbosa – Sim. A obrigatoriedade da educação artística foi inserida na reforma educacional brasileira influenciada pela Universidade de San Diego, nos Estados Unidos, por volta de 1971. No entanto, essa implementação começou de forma confusa em 1973, com muita incerteza sobre o que fazer, até mesmo na USP. A reforma exigia um professor para as quatro disciplinas de arte, o que era difícil.

Ana Mae Barbosa – Eu fui a primeira professora na USP com o novo modelo de licenciatura em arte, que não existia antes. Discutia muito, conversava, visitava escolas e tentava unir as pessoas interessadas. Inicialmente, eu tinha “horror à educação”, em parte pela minha criação e pela pressão da minha avó para que eu fosse professora, vendo a educação como um processo de repressão. No entanto, ao conhecer Paulo Freire, ele me convenceu de que a educação podia ser outra coisa, uma libertação, um encontro consigo mesma, mostrando que a repressão que eu vivenciei não era a essência da educação. Com ele, organizei o curso Arte e Política, na própria USP.
Porvir – Por falar em organização, ainda na USP, você foi responsável por um evento importante, bem destacado na exposição do Itaú Cultural…
Ana Mae Barbosa – Sim, organizei a “Semana de Arte e Ensino”, em 1980. O nome foi escolhido para atrair tanto pessoas interessadas em arte quanto em educação, pois “arte-educação” não era um termo conhecido. Conseguimos juntar cerca de 3 mil pessoas, o que foi um sucesso extraordinário. Inicialmente, tive dificuldades para conseguir dinheiro com o diretor da instituição, mas ele liberou mais verba quando viu o grande número de inscritos, mais de mil e quinhentos. A chamada para o evento nos jornais usou o título de uma obra de Gauguin [Paul Gauguin, pintor francês]: “De onde viemos, quem somos, para onde vamos”. Incluímos diversas áreas, como música, teatro, artes visuais, cinema, cada uma com um grupo de discussão. Convidei Paulo Freire para fazer a abertura e recuperamos esse discurso para levá-lo à exposição no Itaú Cultural.
Porvir – Qual foi a influência de Paulo Freire em sua carreira?
Ana Mae Barbosa – Paulo Freire foi uma grande influência para minha carreira docente, junto com Dona Noemia Varela. Conheci Paulo Freire quando ele era professor, e ele usava a ideia de respeitar o campo de referência dos alunos. No primeiro dia, pediu que escrevêssemos por que queríamos ser professoras, e eu escrevi sobre meu desagrado com a educação vista como repressão. Ele leu todos os textos e me chamou para conversar separadamente, dedicando cerca de duas horas para me convencer de que a educação podia ser libertadora. Ele já tinha sua teoria pronta e a compartilhou comigo. Ele até foi conversar com minha avó, Dona Marinita, para tentar convencê-la a me deixar dar aulas no Instituto Capibaribe, onde ele lecionava. Ele também me emprestou o primeiro livro de John Dewey que li, aprofundando minha influência pela ideia de arte como experiência e aprendizagem pela experiência.

Porvir – Você é uma grande defensora pelo direito à arte, dentro e fora da escola. Como tornar a arte-educação menos elitista e mais acessível?
Ana Mae Barbosa – A arte parece elitista porque permitimos que seja. A arte é um direito, deveria ser como “arroz e feijão” na vida de todos. Quando estava no MAC (Museu de Arte Contemporânea) na gestão da prefeita Luiza Erundina, fizemos um programa para levar a arte às escolas públicas. Levávamos posteres de obras importantes em cavaletes que um motorista do museu inventou. Eu ou um professor do MAC dávamos a primeira aula na escola. Depois, o professor da sala de aula levava os alunos ao MAC para verem a obra original e terem aula lá. Isso era feito com alunos de quintas séries. O impacto foi grande: famílias começaram a visitar o MAC por conta própria depois que os filhos participavam do programa. Esse programa alcançou 10 mil crianças.
Porvir – Como foi a experiência de dirigir um museu?
Ana Mae Barbosa – Quando fui curadora e diretora do MAC, meu objetivo era tornar o museu mais inclusivo e educativo. Inspirada pelas experiências que tive nos Estados Unidos nos anos 1970, tentei implementar um projeto multicultural, com exposições sobre candomblé, carnavalescos, códigos indígenas e o trabalho criativo de operários, como pedreiros e lateiros. As reações foram difíceis – ouvi comentários como “Meu Deus, que coisa horrorosa” –, o que mostrou a resistência a essas temáticas na época.
Também busquei uma nova visão para o museu, convidando pessoas com vocação para a educação popular, entre elas o criador da USP Leste [reitor Adolpho José Melfi] e Paulo Freire, para compartilharem suas ideias sobre o que um museu poderia ser. Infelizmente, o material gerado nessa iniciativa acabou se perdendo. Ainda assim, essa fase foi marcada pelo esforço de democratizar o acesso à arte, aplicar a Abordagem Triangular com obras originais e abrir espaço para múltiplas vozes dentro do museu.
Porvir – Como você vê a situação atual da arte-educação no Brasil?
Ana Mae Barbosa – Atualmente, a obrigatoriedade do ensino da arte foi retirada ou “emudecida” na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Não há suporte, como cursos para professores, para que eles possam se adequar ou trabalhar a arte na escola. É uma tristeza, não tem “nada nada”. Se o professor quer algo, tem que buscar por conta própria. No entanto, há uma iniciativa de três deputados federais que propuseram o retorno da obrigatoriedade do ensino da arte com ênfase em arte-educação, usando a Abordagem Triangular declaradamente. O Ministério da Cultura, por outro lado, está trabalhando bem com projetos em comunidades.

Porvir – Você mencionou a importância de estimular a arte desde a infância. Por quê?
Ana Mae Barbosa – Sempre defendi a importância de incentivar a arte desde cedo. Para mim, isso é lógico: a criança ainda tem um vocabulário limitado para se expressar, e a arte vem justamente completar essa capacidade. Atividades como desenhar, fazer riscos, fechar círculos são fundamentais para o desenvolvimento da coordenação motora – algo essencial para a escrita. Sempre recomendei que se crie um “cantinho da arte” em casa, um espaço onde a criança possa se manifestar livremente. Meu livro mais recente, inclusive, é dedicado às crianças [“Artes Visuais na Educação Infantil a partir da Abordagem Triangular”, Editora Cortez, 2024].
Porvir – A tecnologia, como a IA (inteligência artificial), pode impactar a arte-educação?
Ana Mae Barbosa – Acredito que a tecnologia, como a IA, pode ser interessante. Ela pode interagir com o ser humano e permitir modificações. A IA tem potencial para acabar com a ideia de que arte-educação é cópia, porque usar a IA apenas para copiar não tem graça. Tenho a impressão de que a IA será usada para reinterpretar, reorganizar
Porvir – O Projeto de Lei 5983/23, que torna obrigatória a oferta da disciplina de artes no currículo da educação básica, tramita em caráter conclusivo na Câmara dos Deputados. Qual sua opinião a respeito?
Ana Mae Barbosa – É um projeto importantíssimo! Vem sendo apresentado por deputados federais, entre eles Chico Alencar e outros do PSOL, e tem como objetivo restabelecer a obrigatoriedade do ensino da arte nas escolas. Isso porque, com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), essa obrigatoriedade foi retirada Embora tenhamos feito uma campanha na qual consegui 15 mil assinaturas que foram enviadas ao MEC, e a arte tenha sido reincluída, ela voltou de forma “emudecida”, sem suporte adequado, sem cursos para formação de professores (confira quadro abaixo). O que me anima nesse projeto de lei é que os deputados fazem referência direta à abordagem triangular, reconhecendo sua importância. A proposta já foi apresentada e representa uma tentativa concreta de corrigir esse apagamento da arte na educação básica.
Arte-educação e a BNCC |
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A divulgação da primeira versão da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) gerou grande preocupação entre os arte-educadores do Brasil. O professor José Roberto Pereira Peres publicou um artigo que explica o processo.
O documento retirava o ensino de arte da condição de área de conhecimento, passando a incluí-lo na área de linguagens, junto com língua portuguesa, língua estrangeira e educação física. Segundo os educadores, a mudança não considerava a arte como meio para a compreensão do pensamento e das expressões culturais, priorizando práticas expressivas sem contextualização, com foco no fazer, sem tratar de sua dimensão crítica e conceitual. A mudança motivou uma mobilização da comunidade de arte-educadores, sendo esse o tema do CONFAEB (Congresso da Federação de Arte-Educadores do Brasil), realizado em Fortaleza (CE), em 2015. Em fevereiro de 2016, foi aprovada no Senado uma alteração no artigo 26 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96), que determinou a obrigatoriedade do ensino de arte na educação básica, incluindo as linguagens de artes visuais, música, dança e teatro. Mesmo com essa mudança, a BNCC manteve a arte como parte da área de linguagens, sem reconhecimento como área com estrutura própria. A disciplina de arte não é incluída nos exames nacionais de avaliação, o que pode contribuir para sua redução no currículo. A junção das linguagens artísticas em uma área maior afeta também a formação de professores em licenciaturas específicas, comprometendo o desenvolvimento da formação nas instituições de ensino superior. Saiba mais sobre o assunto neste artigo de José Roberto Pereira Peres. |
Atualizado em 23/06/25
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