A matemática talvez não esteja entre as temáticas mais queridas de todos os estudantes. Pelo contrário, ela pode entrar na lista dos componentes curriculares que os alunos menos gostam. Mas é tudo culpa dela?
O último Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), estudo divulgado em 2023 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, uma organização internacional composta por 38 países, na sua maioria economias avançadas), mostrou que 73% dos estudantes brasileiros ficaram abaixo do mínimo nesse componente (ante 31% da média de estudantes da OCDE). O índice avalia competências em matemática, leitura e ciências, além de outras habilidades, como criatividade e pensamento crítico, por meio de uma prova aplicada em 81 países.
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De acordo com Antônio Miguel, professor no departamento de ensino e práticas culturais da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), os desafios encontrados no ensino da matemática não são únicos do Brasil e estão relacionados à maneira como se decidiu ensinar o assunto. “A maior parte das pessoas responderia que a matemática é mal ensinada, que é preciso ter metodologias diferenciadas”, iniciou o docente em entrevista ao Porvir.
“Nas pesquisas que temos feito, sobretudo no campo da história da matemática, o fracasso reiterado do ensino e da aprendizagem da matemática no mundo todo – não é só um fenômeno no Brasil – se deve, na verdade, ao fato de que a rigor, nós não ensinamos matemáticas nas nossas escolas, mas a gente sempre ensinou filosofias da matemática”, destacou.
Dados de 2021 do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) apontaram que somente 37% dos estudantes do 5º ano atingem o nível esperado de aprendizagem de matemática. O estágio é representado por quem atinge mais de 225 pontos (em 375), conseguindo resolver problemas básicos, interpretar gráficos simples e reconhecer formas e medidas. Anos depois, ao final do ensino médio, o funil aperta ainda mais, com apenas 5% concluindo a etapa com uma aprendizagem adequada. Estamos falando de uma pequena parcela de estudantes capazes de demonstrar habilidade para resolver problemas com funções, interpretar gráficos complexos e trabalhar com geometria analítica.
O que isso quer dizer?
Antônio, que é membro do Phala, grupo de pesquisa em educação, linguagem e práticas culturais, exemplifica que, reduzir a geometria à identificação de formas geométricas ou a matemática somente à contagem de objetos é uma abordagem limitada. A matemática vai além, sendo uma prática cultural bem ampla e ligada à resolução de problemas da vida, mas não corresponde à sua totalidade.
“O conhecimento matemático, desde a época pré-histórica, corresponde a práticas que são produzidas como respostas a problemas emergentes nos diferentes campos de atividade humana, na agricultura, no comércio, na navegação etc. Por isso, não devemos ver a matemática como um conjunto de conteúdos seriados e organizados”, afirma.
Em outras palavras, o professor propõe uma ampliação do que se entende por matemática no momento de apresentá-la aos estudantes, situando-a como algo presente na vida deles, conectado com suas experiências cotidianas, para além das fórmulas e cálculos geométricos.
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“Um dos problemas que identificamos, e que faz com que as dificuldades de aprendizagem no Brasil sejam transversais, independentemente de contexto, região, cultura ou experiência, é uma falta de uma discussão efetiva sobre matemática com os alunos. Não discutir por discutir, mas de fazer com que os estudantes parem e reflitam”, diz Miguel Ribeiro, professor da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador do CIEspMat (Grupo de pesquisa e formação em matemática).
Segundo o educador, de norte a sul do país, esta dificuldade é comum nas aulas de matemática. “De modo geral, é uma prática muito centrada no saber fazer ou em encontrar a resposta. Se analisamos a maioria dos materiais disponíveis para os alunos, é assim: ‘faz isso e isso, acabou, passe para a próxima’. Portanto, os alunos têm dificuldades no mesmo conjunto de coisas”, afirma o pesquisador.
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Trazer o cotidiano para dentro da matemática
Nesse aspecto, uma mudança proposta pelo educador com potencial impacto no aprendizado dos estudantes consiste em trazer o cotidiano para a aula de matemática. “Na minha perspectiva, é um ponto positivo trazer experiências sociais e culturais como ponto de partida e como contexto de discussão”, diz.
Ele propõe também que esses debates sirvam para incentivar o pensamento crítico da turma em relação aos seus próprios territórios. Ou seja, pensar sobre a matemática no cotidiano para compreender como intervir no contexto social e até mesmo transformá-lo.
De acordo com dados do Censo da Educação Básica de 2024, existem 2,4 milhões de docentes, com a maior parte deles atuando no ensino fundamental (o que corresponde a 1.431.320 docentes). Desse montante, estima-se que pouco mais de 600 mil dediquem-se a ensinar matemática.
Tornar a matemática interessante de novo
Durante sessões formativas para formadores de matemática, Miguel costuma provocar a turma: “Será que conseguimos discutir qualquer assunto da matemática em um churrasco sem que o público ache ruim? Porque assunto de churrasco tem que ser interessante. E quando estou em um churrasco, estou animado”.
A analogia demonstra que mesmo assuntos complexos não precisam ser maçantes. Embora a matemática seja considerada difícil, as aulas podem ser dinâmicas. Para além de dominar as quatro operações – algo que os estudantes podem realizar com o apoio de um celular ou computador –, Miguel defende que atribuir significado aos conceitos e estimular o pensamento crítico são estratégias eficazes para melhorar o aprendizado.
“Para mim, um dos problemas é a essência da discussão matemática continuar a mesma. A conversa que é feita em sala de aula não é minimamente atrativa para os alunos. Que matemática é essa que nós discutimos para que os alunos fiquem efetivamente engajados?”, questiona.
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Aprendendo a ensinar matemática
Em 1908, o matemático alemão Félix Klein publicou o livro “Matemática elementar de um ponto de vista avançado”, no qual descreve uma desconexão entre a matemática apresentada nas licenciaturas, o que esses estudantes viram durante a educação básica e a futura prática profissional. Esse desajuste é nomeado pelo pesquisador como “dupla descontinuidade”, estabelecida na diferença entre a matemática aprendida na escola e a ensinada na formação de professores.
“Os jovens estudantes universitários são confrontados com problemas que nada têm a ver com as coisas em que esteve envolvido na escola e, naturalmente, esquecem-nas rapidamente. Quando, depois de completarem o curso, se tornam professores, são confrontados com a necessidade de ensinar a matemática elementar na forma adequada ao grau de ensino, primário ou secundário, a que se dedicam, e, como não conseguem estabelecer praticamente nenhuma conexão entre esta tarefa e a matemática que aprenderam na universidade, facilmente aceitam o ensino tradicional, ficando seus estudos universitários como uma memória mais ou menos agradável que não tem influência na sua forma de ensinar”, escreveu Félix.
Passados 117 anos da publicação, esse cenário permanece. Etienne Lautenschlager, mestre em educação matemática e professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e integrante do departamento de educação e do programa de pós-graduação em inovação tecnológica educacional, analisa: “A decadência no ensino da matemática é multifatorial”, afirma. Contudo, no cerne da questão, para ela, está a formação docente.
“O conhecimento do professor é o coração dessa mudança. E se você não tem uma formação muito boa, você não produz bons resultados”, destaca Etienne.
Há dois aspectos que, segundo a representante da UFRN, comprometem a aprendizagem da matemática nas escolas. Por um lado, há relatos de que no currículo de pedagogia há pouco espaço para matemática, enquanto nas licenciaturas em matemática a didática é negligenciada.
Esse foi um aspecto identificado por Etienne quando realizou, em 2023, um fórum de licenciaturas que ensinam matemática envolvendo debates sobre o ensino do componente nos anos iniciais. “A gente percebeu que muitos professores saem formados em matemática sem saber ensinar matemática”, pontua.
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Durante uma formação de professores, Etienne fez o seguinte questionamento: “Quando vocês ensinam divisão de fração, como fazem? Em coro eles responderam de forma unânime: ‘Mantemos a primeira fração e multiplicamos pelo inverso da segunda’”, lembra a docente. Para aprofundar o debate, ela perguntou então como os professores respondem quando um estudante de 13 anos pergunta por que a divisão vira multiplicação ou por que se inverte a segunda e não a primeira: “A maioria não soube responder. É aquela coisa: eu sei fazer, mas não sei o porquê”, destaca.
Essa situação ilustra tanto o que foi apresentado por Félix Klein, quanto reflete a proposta do professor Miguel sobre ensinar matemática sob um ponto de vista mais reflexivo.
Etiene complementa: “Como que eu vou te ensinar uma coisa que eu não aprendi? Esse link a gente não faz sozinho, tem que ter alguém mais experiente”.
Carga horária necessária
Letícia Rangel, professora de matemática no CAP-UFRJ (Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora do projeto Meninas Olímpicas do IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), aponta outra questão importante, relacionada à formação de pedagogos. Muitos desses educadores que lecionam nos anos iniciais sem formação específica em matemática desenvolvem uma relação difícil com a disciplina.
Ela também considera que a carga horária dedicada à matemática nos cursos de pedagogia é insuficiente para que eles possam debater o assunto como é necessário. “Em algumas universidades, os cursos de pedagogia oferecem apenas duas disciplinas de matemática. É muito pouco. Essa distribuição é muito calcada na compreensão, ou no entendimento errado, de que o que será ensinado é fácil. Não é! Ensinar à criança todo o sistema de numeração é algo complexo e o professor precisa de uma formação adequada para isso”, afirma.
Conhecimento matemático específico para a docência
Para uma compreensão dos desafios próprios do ensino da matemática, a professora do CAP-UFRJ avalia que é necessário fazer uma distinção entre o conhecimento matemático que os educadores precisam ter daquele necessário a outros profissionais, como engenheiros, matemáticos ou economistas.
“Para que o aluno aprenda, um professor precisa conhecer a matemática de um ponto de vista específico da docência, e isso passa pela formação”, diz a educadora. Como exemplo, ela cita que, para um matemático, é mais importante entender o processo de divisão do que simplesmente saber como ela é feita.
“Um professor tem que compreender em quais contextos a divisão se apresenta para oferecer esses contextos para os alunos. Do contrário, vira uma regra sem significado. Mais importante do que efetuar, é saber onde aplicar”, destaca a educadora.

Apesar de reconhecer os avanços e iniciativas pontuais por um ensino diferente da matemática, Letícia afirma que um dos principais gargalos da formação docente está nessa mudança de perspectiva, transpondo a matemática de algo centrado no fazer para algo com significado.
“Já sabemos que é preciso valorizar a prática, construir conhecimento próprio do professor e preparar melhor o formador”, diz. O que ainda requer certa atenção, para ela, é conscientizar a comunidade científica, responsável pela formação de formadores. Ou seja, quem está nas universidades formando pessoas que, por sua vez, vão repassar seus conhecimentos para quem está na sala de aula.
“Se o formador não reconhece a necessidade de mudança, o professor sai sem a base que ele precisa e não prepara seus estudantes adequadamente, que entram na universidade com deficiências. É um ciclo mesmo”, destaca.
Formação continuada como chave da transformação
Letícia também faz uma ressalva de que a formação do professor deve ser contínua. “A gente sabe que um professor não consegue formação suficiente para dar aula em toda a educação básica em apenas quatro anos de graduação”. E ela sugere que o reconhecimento dessa necessidade de aprendizado constante para a prática docente é fundamental para a melhoria da educação.
Neste sentido, Etienne complementa que é a prática quem forja o professor. Ao sair da universidade, os profissionais não estão completamente aptos. É na vivência diária da sala de aula que consolidam sua capacidade de ensinar
Já Miguel é mais enfático. “Se nós queremos efetivamente melhorar a prática do professor e as aprendizagens dos alunos e, por consequência, os resultados deles na matemática, o grande investimento tem que ser na formação contínua. Precisamos de programas que realmente ajudem os professores a fazer diferente daquilo que tem sido feito, e diferente do que fizeram com eles”, aponta, lembrando ainda que o contexto exige que educadores superem seus próprios traumas vividos em relação à disciplina
Novos olhares para o ensino da matemática
É de interesse dos professores que ensinam matemática que o cenário mude. O governo federal lançou em 2023 o Compromisso Nacional Toda Matemática, com a intenção de equiparar o protagonismo da disciplina ao já alcançado pela alfabetização, seguindo o exemplo do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
Desde o começo de 2024, o MEC (Ministério da Educação) realiza uma série de webinários com professores e estudantes sobre diferentes abordagens da matemática. A pasta também criou um Clube de Letramento Matemático, que incentiva a colaboração de docentes para pensar formas inovadoras de ensinar a disciplina.
Além disso, em março deste ano, o MEC abriu uma escuta nacional de professores que ensinam matemática para captar percepções sobre a carreira docente e outros aspectos relevantes. Kátia Schweickardt, secretária de educação básica do MEC, afirmou em entrevista ao Porvir que a formulação de políticas públicas na educação precisa estar baseada nas experiências e reflexões dos educadores no contexto escolar e que não é possível construir políticas públicas sem ouvi-los.
“Os professores de matemática trazem uma série de questões e uma formação muitas vezes diferente da dos demais professores de educação, porque muitos não fizeram pedagogia, especialmente a partir do 6º ano”, disse. Leia a entrevista.
O Porvir participou como parceiro técnico na elaboração desse processo de escuta docente. Os resultados devem ser divulgados em breve pelo MEC.
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