A pandemia de Covid-19 expôs e intensificou as condições de trabalho já precárias dos profissionais da saúde, especialmente da enfermagem. Em Juiz de Fora, cinco anos após o início da crise sanitária, enfermeiros e técnicos de enfermagem da rede pública ainda enfrentam uma realidade de sobrecarga, jornadas exaustivas, infraestrutura inadequada, assédios e violência, além de preocupações com a remuneração, mesmo após a instituição do Piso Nacional da Enfermagem em 2022, conforme apurou a Tribuna junto á categoria.
Trabalhadores da enfermagem de hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBSs) da cidade relataram à reportagem problemas como a jornada de 40 a 44 horas semanais e a remuneração considerada insuficiente, levando muitos a buscarem múltiplos vínculos empregatícios. A sobrecarga de trabalho tem gerado problemas de saúde mental e física, com diagnósticos de depressão e síndrome do pânico, e consequentes afastamentos. Relatos indicam, ainda, desvalorização da classe, com falta de benefícios e condições de descanso inadequadas, e distinção no tratamento entre técnicos e enfermeiros em algumas instituições.
A situação nas UBSs também é crítica. Uma técnica de enfermagem da Zona Norte relatou que, apesar da redução da jornada para 30 horas semanais, as reuniões online e o Programa de Educação Permanente em Saúde complementam a carga horária. Além disso, o salário-base ainda não reflete o valor total do Piso Nacional, sendo a diferença paga como complemento pela Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), sem impacto na aposentadoria e benefícios. A profissional também destacou a falta de materiais, medicamentos e médicos, o que resulta em pacientes culpando e, por vezes, agredindo os profissionais. A infraestrutura de algumas unidades de saúde na Zona Rural permanece precária, e a redução do horário de atendimento nessas áreas dificulta o acesso dos pacientes.
Para preservar o direito das fontes, o anonimato foi mantido a pedido da maioria dos entrevistados, que atuam na rede pública de saúde do município.
Profissionais detalham rotina de sobrecarga e desafios
Um enfermeiro que atua no Hospital Pronto Socorro (HPS) relata que profissionais da saúde da instituição enfrentam problemas decorrentes da sobrecarga de trabalho, uma situação que é caracterizada por ele como “crônica”. Como explica, os profissionais cumprem jornadas de 40 a 44 horas semanais, e a remuneração, mesmo com a fixação do piso salarial, ainda é considerada insuficiente pela categoria. Essas condições levam muitos destes trabalhadores a assumirem cargos e vínculos trabalhistas em outras instituições de saúde.
“Eu mesmo trabalho em dois lugares. As pessoas trabalham, geralmente, em dois hospitais para poderem ter um salário relativamente satisfatório. Normalmente a pessoa faz de 80 a 88 horas semanais, ficando cansada e estressada. E passam por coisas fortes, como questões de saúde mental. Depois da pandemia eu senti que a situação ficou mais grave. A gente viveu aquilo ali de frente, as pessoas ficaram mais sobrecarregadas e insatisfeitas”, relata.
A situação é semelhante para quem atua em unidades vinculadas ao Estado. Um técnico de enfermagem que atua no Hospital Regional Dr. João Penido, administrado pera Rede Fhemig, também considera que um dos maiores desafios dos profissionais da enfermagem é a jornada exaustiva. De acordo com o trabalhador, a sobrecarga de trabalho na instituição faz com que muitos profissionais tenham problemas de saúde mental e física, com vários deles recebendo diagnósticos de depressão e síndrome do pânico. Consequentemente, há um grande número de apresentação de atestados, afastamentos prolongados e faltas diárias, que pesam ainda mais o quadro de trabalhadores presentes.
“Eu trabalho no hospital há 13 anos, e também já trabalhei em (outros) dois hospitais. Mas, desenvolvi uma crise de ansiedade, por cansaço mesmo, e me adaptei a ficar somente em um trabalho. A maioria dos colegas que trabalha em dois hospitais faz isso por muito tempo, levando ao afastamento mais prolongado do trabalho”, relata o técnico.
As reclamações se repetem em outro hospital da área central: uma técnica de enfermagem relatou uma crescente desvalorização da classe, resultando na desmotivação destes trabalhadores. Sobrecarga de trabalho, baixos salários e falta de benefícios estão entre as queixas mais frequentes. “Estão nos tratando com descaso e nos sobrecarregando com as tarefas. Ficamos responsáveis por 6 a 8 pacientes, e muitas vezes, nos tiram de um setor para cobrir outro”.
Além disso, ela também reclama do tratamento respeitoso e das condições de trabalho desiguais oferecidas aos técnicos de enfermagem em comparação aos enfermeiros da instituição. “Descansamos numa maca, em um local precário. As enfermeiras têm sala de descanso e direito à folga. Quando nós precisamos fazer uma troca, ela é feita como querem”.
Em outro equipamento de saúde da cidade, uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada na Zona Norte e dedicada ao atendimento primário a pacientes, uma técnica de enfermagem do quadro afirma que o cenário é semelhante ao dos hospitais. Ela diz que mesmo com a redução da jornada de trabalho, agora estabelecida como 30 horas semanais, os profissionais ainda precisam participar de uma reunião on-line às quintas-feiras e do Programa de Educação Permanente em Saúde, instituídos para complementação desta carga horária.
Quanto à remuneração da categoria, ela conta que o salário-base é pago conforme o valor anterior à implementação do Piso Nacional da Enfermagem. Como explica, a quantia restante para atingir o piso estabelecido é paga pela Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) como um complemento, mas este acréscimo ainda não é repassado corretamente. “Esse pagamento não vem como salário-base, que seria o correto para adicionar na nossa aposentadoria e nos nossos benefícios”, diz.
A profissional também relata que, na unidade em que trabalha, há falta de materiais, medicamentos e médicos para atendimento aos pacientes. “A gente vai fazer um curativo, mas, muitas vezes, não tem soro fisiológico e gaze, e pedimos ao paciente para trazer. Então, não tem a estrutura adequada para trabalhar. A verdade é que, no final, o paciente coloca a culpa toda em nós, diz que somos culpados. Tem paciente que xinga, quer bater, e fala que vai nos esperar na saída”.
Ela conta que as condições da unidade em que trabalha eram péssimas, mas após a reforma, houve uma melhora significativa de sua estrutura. Porém, há ainda muitos postos de saúde do município em que as condições estruturais dificultam o trabalho dos profissionais. Também é crítica à redução de horário de atendimento nas UBSs da Zona Rural, que contam com atendimento somente entre 7h às 13h. “A partir do momento em que a carga horária dos trabalhadores foi reduzida, as unidades rurais também têm necessidade de uma equipe à tarde. A Zona Rural é de difícil acesso, já não tem muitos ônibus. Quem precisa de atendimento à tarde, como faz?”
Entidades de classe defendem melhores condições e valorização da enfermagem
A presidenta do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Juiz de Fora (Sinserpu-JF), Deise Medeiros, atua como auxiliar de enfermagem em um hospital da cidade e considera que os problemas já existentes na área da saúde foram potencializados e agravados após a pandemia de Covid. A queda de casos da doença gerou expectativas de que a categoria, formada por enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, seria valorizada, porém, como avalia, as condições de trabalho desses profissionais ficaram piores.
Segundo a sindicalista, a saúde mental e física dos profissionais está comprometida, com muitos sendo diagnosticados com Síndrome de Burnout e com comorbidades decorrentes da Covid. Aqueles que continuam nos atendimentos, afirma, enfrentam sobrecarga de trabalho e episódios de violência, tanto física como moral. “A saúde pública piorou muito, pelo menos aqui na cidade. Os nossos profissionais trabalham com falta de material, de equipamentos e de condições para acomodar os pacientes.”
Deise aponta distorção do piso salarial destes profissionais. “Foi criado para ser um piso e não um teto e, na verdade, virou o que os municípios pagam de máximo. Ainda tem muito a se corrigir. Não estão respeitando a carreira dos trabalhadores da enfermagem.” A complementação paga pelo Governo federal e repassada aos estabelecimentos de saúde ainda não está inclusa nos vencimentos desses trabalhadores, explica. De acordo com ela, o ‘pagamento incorreto’ afeta a contribuição da Previdência Social e, mais tarde, nos valores recebidos pela aposentadoria, que podem ser menores em comparação ao salário total recebido durante o vínculo.
‘Falta de cuidado’ e desafios do piso
Ao refletir sobre as condições de trabalho de enfermeiras e enfermeiros de Minas Gerais, o presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Minas Gerais (SEEMG), Anderson Rodrigues, retoma os resultados da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil (Cofen/Fiocruz), realizada em 2015. Segundo o sindicalista, à época, o mapeamento constatou a situação de subemprego vivida pelos trabalhadores da saúde no Estado que, em sua visão, não se alterou no últimos dez anos. “Suas condições já se encontravam sucateadas, tanto no sistema público, como no sistema privado. Existe uma falta de cuidado com esses profissionais”, afirma.
Ainda que o estudo tenha sido publicado há dez anos, as condições precárias da categoria não só persistiram, como também se agravaram com a pandemia, como dito anteriormente por outros sindicalistas da categoria. Problemas relacionados à saúde mental e física, aos assédios e violências sofridos, aos locais inadequados para descanso no local de trabalho, à falta de fornecimento de alimentação e à concessão de folgas, são as reclamações mais encaminhadas ao sindicato, como cita o representante.
As questões ligadas ao pagamento dos salários, ainda em desconformidade com o Piso Nacional, e os atrasos nos repasses do Governo Federal para a complementação foram apontados por Rodrigues. “O salário vem como complemento, não como salário básico, porque ainda existe uma ação de inconstitucionalidade a ser julgada”. Também foram citados os embaraços envolvendo decisões jurídicas sobre o dimensionamento de profissionais de enfermagem, que define o quadro de profissionais necessários para a demanda de cada serviço. “Existia uma resolução do Conselho Federal de Enfermagem que determinava o dimensionamento, mas virou um parecer, ou seja, perdeu a força. Não entendemos por que isso foi feito, mas estamos na luta.”
Em conversa com o presidente do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos e Serviços de Saúde de Juiz de Fora, Anderson Stehling, responsável pela representação dos trabalhadores da área da saúde de instituições filantrópicas e privadas, o representante declarou que o poder público deveria trabalhar para a determinação deste número fixado de pacientes atendidos por cada enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliares de enfermagem. Como explica, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MG) recomenda que cada profissional fique responsável por até cinco pacientes, porém o órgão fiscalizador da profissão não tem poder legal para impor isso às empresas. Com isso, não haveria fiscalização adequada sobre a questão na cidade. “No Brasil, costumam demorar para resolver as questões da saúde. Essa determinação daria um salto de qualidade no atendimento de saúde”.

Quanto ao pagamento do Piso Nacional da Enfermagem no município, ele afirma que os hospitais privados pagam o valor corretamente, enquanto os filantrópicos, assim como os públicos, recebem o complemento do Ministério da Saúde. Como consequência do aumento da remuneração, as instituições privadas têm feito menos contratações, e muitos profissionais ficaram desempregados ou estão afastados devido a problemas de saúde relacionados ao trabalho.
Stehling reiterou receber reclamações equivalentes às relatadas pelos demais sindicatos: o adoecimento dos trabalhadores da saúde e suas condições de trabalho precárias. “Trabalhar na área de saúde virou um perigo. A categoria está ficando doente. Estou recebendo uma média de duas denúncias de assédio moral sofrido por estes trabalhadores toda semana”.
O sindicalista ainda relembrou o caso de vandalismo ocorrido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Norte, administrada pelo Hospital São Vicente de Paula, uma instituição filantrópica. “Nós estamos pedindo mais segurança nas UBSs, nas UPAs e nos hospitais. Não trabalhamos para separar brigas e acabar com tumultos. Nós trabalhamos para salvar vidas”.
Coren-MG
A Tribuna questionou o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MG) sobre as reclamações feitas pelos profissionais da saúde ouvidos para a produção desta matéria. De acordo com o órgão, “a grande maioria das instituições de saúde não consegue atender às necessidades materiais e humanas”. Conforme declara, o conselho trabalha por melhorias para a categoria e por mudanças com relação ao dimensionamento profissional. Também informou que a instituição do piso salarial da enfermagem, após recursos julgados no Supremo Tribunal Federal, obedece aos critérios estabelecidos pela decisão do Poder Judiciário.
Por fim, o Coren-MG afirmou que vem intensificando a luta para que a Enfermagem tenha uma real valorização. “Isso passa, por exemplo, pela aprovação da PEC 19 (Proposta de Emenda à Constituição) que vincula o piso da Enfermagem a uma jornada de 30 horas e prevê reajuste anual. Em nossas ações, cobramos intensamente o presidente da CCJ do Senado para que paute a PEC 19, uma vez que a matéria já tramita na Casa.”
Segurança e combate à violência são pautas urgentes
Para além do reconhecimento destes profissionais através de uma remuneração justa, de condições adequadas de trabalho e do estabelecimento de um plano de carreira de acordo com a capacitação do profissional, o sindicato também reivindica o combate à violência sofrida por estes servidores da saúde. “O poder público tem a responsabilidade de garantir a segurança do seu prestador de serviço, do seu trabalhador. Temos esse pleito envolvendo a nossa classe, que sofre lá na ponta, trabalhando diretamente com os usuários do sistema”, aponta a servidora.
Em 3 de julho, uma médica foi agredida em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na Zona Leste de Juiz de Fora. A profissional relatou ter sido agredida com socos, chutes e puxões de cabelo por uma paciente que estava insatisfeita com o atendimento. Embora seja de outra categoria, o caso exemplifica as vulnerabilidades e a exposição à violência que os profissionais de saúde enfrentam constantemente no ambiente de trabalho.
PJF afirma trabalhar para melhoria da saúde na cidade
Em resposta à Tribuna, a partir do relatos dos profissionais, a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora (PJF), esclareceu que a quantidade de profissionais na rede hospitalar do município é definida de acordo com cada tipo de atendimento, seguindo diretrizes técnicas. Quanto ao estoque de medicamentos e insumos, a gestão informou que este encontra-se regularizado, mas há a possibilidade de “algum lapso entre a solicitação à central de distribuição e a entrega”.
Sobre questões de infraestrutura das unidades de saúde, a Administração municipal declarou que vem investindo em melhorias, com reformas, novas construções e instalação de novos equipamentos. Também informou que houve otimização dos atendimentos médicos na Zona Rural, que agora funcionam por seis horas consecutivas, além da redução da jornada para 30 horas semanais a seus servidores, incluindo os profissionais da saúde. Em relação ao piso salarial das categorias, segundo a gestão, os valores estão sendo devidamente pagos, conforme exige a legislação.
A Tribuna também contatou a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), responsável pela administração do Hospital Regional João Penido, e a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) questionando sobre a situação destes trabalhadores da saúde.
Por meio de nota enviada ao jornal, a Rede Fhemig e a SES-MG informaram que a carga horária de trabalho dos enfermeiros e técnicos de enfermagem está em estrita conformidade com a lei que estabelece o cumprimento de 30 a 40 horas semanais, dependendo do cargo e local de atuação. Também afirmaram que a distribuição de pacientes por profissionais de saúde no hospital segue as diretrizes do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Por fim, declararam que a gestão não tem autonomia para responder sobre questões salariais.