A versão anterior deste texto informava 5 Ps contidos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O correto são 3. Os outros dois Ps são sugestões da especialista Giselle Santos.
Longe de se tratar de uma discussão sobre o futuro, a presença da inteligência artificial na educação brasileira é cada vez mais evidente, com o reconhecimento de que a “onda é muito rápida” e o tempo para as transformações é curto. Nesse cenário, o MEC (Ministério da Educação) e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) realizam, nesta quinta e sexta-feira, em Brasília (DF) o seminário IA na educação básica: construindo referenciais nacionais, que reúne especialistas de universidades, diferentes esferas de governo e da sociedade civil. Durante a mesa de abertura e os dois painéis seguintes, foi ressaltado que professores e estudantes permanecem no centro do processo educacional, mesmo com a crescente integração da tecnologia.
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A inteligência artificial ainda é considerada como uma ferramenta com potencial para apoiar professores no ensino e na gestão dos processos de aprendizagem. No entanto, esta perspectiva é acompanhada de uma cautela significativa, reconhecendo “enormes riscos” e “grandes desafios”. “É fundamental salvaguardar os direitos dos professores e garantir condições de trabalho adequadas para eles no contexto do crescente uso da inteligência artificial no sistema educacional, no local de trabalho e na sociedade em geral”, disse Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil. O evento também marcou o lançamento de duas publicações em português: o ”Marco referencial de competências em IA para professores” e o ”Marco referencial de competências em IA para estudantes”. Esses documentos trazem orientações para preparar os estudantes a se tornarem cocriadores ativos de IA e futuros líderes capazes de moldar novas iterações da tecnologia e definir sua relação com a sociedade.
Ao mesmo tempo, fez um alerta. “Os professores precisam urgentemente ser capacitados para entender melhor as dimensões técnicas, éticas e pedagógicas da inteligência artificial. A rápida ascensão dos sistemas de inteligência artificial está gerando profundas implicações para o ensino e para a aprendizagem, particularmente no que diz respeito ao papel dos professores e às competências necessárias para navegar no cenário tecnológico em evolução. O uso da IA na educação está levantando questões fundamentais sobre a autonomia do professor e sua capacidade de determinar como e quando fazer uso criterioso dessa tecnologia”.
Outros, como Manuel Palácios, presidente do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), expressaram a urgência e a necessidade de cautela proativa no processo. Ele mencionou a experiência do Pisa (avaliação internacional que mede o desempenho de estudantes de 15 anos) deste ano, que fornecerá resultados sobre letramento digital. Além disso, mencionou que a IA oferece a oportunidade de organizar um vasto conjunto de informações de propostas de avaliação já executadas, que historicamente eram pouco padronizadas, permitindo “análise dessa trajetória muito grande e com isso organização e relançamento das nossas propostas”. E defendeu o uso de tais recursos ao explicar que, “para a elaboração de testes, a inteligência artificial ajuda como uma ferramenta de suporte muito significativa e tem que ser incorporada”.
Em seguida, João Brant, secretário de políticas digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, foi na mesma linha e também reforçou que a cautela não pode ser percebida como medo e avalia que um dos principais riscos da IA é a uniformização e a perda das singularidades e da diversidade da sociedade, pois tais sistemas tendem a basear decisões em médias gerais e tendências de escolhas anteriores, o que pode “domesticar” nossa capacidade de interpretação e avanço como espécie humana.

IA na escola
Nesse contexto, a “intencionalidade pedagógica” emerge como a palavra central para a implementação da IA. Israel Batista, integrante do CNE (Conselho Nacional de Educação), lembrou como experiências anteriores, especialmente a do uso do celular nas escolas, demonstraram que a ausência de planejamento e diretrizes resultou em problemas como desatenção, hiperexposição a telas e conflitos, ao invés de benefícios. “Estamos arcando com o ônus dos celulares porque não fomos intencionais: eles passaram a incomodar a professora, com o WhatsApp tocando a toda hora. Foi por isso que não obtivemos o bônus”, disse.
Para garantir uma implementação responsável, a formação de professores é vista como uma necessidade urgente, capacitando-os a compreender as dimensões técnicas, éticas e pedagógicas da inteligência artificial. Segundo Evânio Antônio de Araújo Júnior, secretário de Gestão da Informação, Inovação e Avaliação de Políticas Educacionais do MEC, no âmbito das políticas públicas há uma estratégia para a definição de parâmetros nessa discussão, que ele atribui a um esforço de “retomada do controle do tema da tecnologia na educação por parte do poder público”. Esse movimento busca evitar que a tecnologia seja incorporada nas escolas “sem mediação” e que a lógica de mercado prevaleça sobre a necessidade de inclusão e equidade.
A secretaria de educação básica, Katia Schweickardt, também colocou a escola como um lugar privilegiado para o debate e conscientização da IA, em particular da cidadania digital. Ela lembrou que a rede do Piauí, que leva disciplina de IA para estudantes do 9º ano do ensino fundamental e para o ensino médio. No entanto, ela destacou o avanço de oito pontos percentuais na alfabetização de crianças, resultado que mostrou a Katia que só faz sentido investir em tecnologias como a IA quando se dá prioridade à base da aprendizagem e à qualidade de vida: “Adiantava ter a disciplina lá se eles não estão cuidando de onde isso vai vir?”.
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IA para além das telas
Giselle Santos, consultora pedagógica de inovação do Instituto Escolas Criativas, destacou a importância de ampliar o repertório imaginário ao discutir infâncias e adolescências no plural, reconhecendo a diversidade (indígenas, quilombolas, periféricas etc.). Ela também defende um olhar mais amplo sobre riscos e oportunidades da IA, ao lembrar que esse tipo de tecnologia hoje em dia não está limitada a telas de celulares, tablets e computadores.
Em situações como essas, famílias podem subestimar sua presença. Brinquedos interativos, como pelúcias com reconhecimento de voz e robôs educativos, utilizam IA de borda para processar informações localmente, sem necessidade de conexão com a internet. Esses aparelhos coletam dados sensíveis como padrões de voz, preferências e até mesmo emoções, levantando preocupações sobre privacidade e segurança. Além disso, muitos desses brinquedos são projetados para influenciar comportamentos, podendo incentivar consumismo ou reforçar estereótipos de gênero e raça de forma subliminar.
Os aparelhos “vestíveis” infantis, como relógios com GPS e pulseiras de monitoramento, também incorporam IA de maneiras que muitos pais não percebem. Embora ofereçam funcionalidades úteis para segurança, esses dispositivos criam uma cultura de vigilância constante desde a infância, potencialmente limitando o desenvolvimento da autonomia e da capacidade de resolver problemas simples sem ajuda tecnológica.
Giselle propôs o modelo de “3 Ps” da Convenção Internacional dos Direitos da Criança para discutir oportunidades e riscos da IA na educação: Provisão, Participação, Proteção. A eles, ela inclui mais dois Ps: Pedagogia e Pertencimento, ressaltando a alta penetração de celulares em todas as classes sociais, mesmo entre crianças muito jovens. Ela trouxe dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, que gera evidências sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes para mostrar o quanto o cenário precisa de atenção.
Crescimento do uso de tecnologia por crianças:
- Entre 6 e 8 anos, o acesso à internet saltou de 41% para 82% (2015–2024); posse de celular dobrou (18% para 36%).
- Crianças de 3 a 5 anos tiveram aumento de 6% para 20% no uso de dispositivos.
- Celular como único acesso: para muitas famílias de classe C, é a única ferramenta digital disponível.
Giselle também alertou para os riscos do fascínio acrítico por ferramentas de geração de imagens, citando um vídeo no TikTok que usa fotos de crianças para “prever” seu futuro, prática que viola a privacidade infantil e reforça padrões de beleza irreais.
Em paralelo às falas de Giselle, Alexandre Sayad, consultor da Unesco e educacional, criticou o debate público sobre IA, dominado por interesses da indústria e do marketing, em vez de discutir seus impactos éticos concretos na vida das pessoas. Ele comparou a cobertura midiática atual sobre IA a uma “quase ficção científica”, onde jornalistas se assemelham mais a ficcionistas do que a profissionais de imprensa, o que impede uma qualificação adequada do tema.
Para Alexandre, não se exerce pensamento crítico sem compreender o funcionamento da inteligência artificial. Ele defende que o letramento algorítmico é um componente relevante para que os estudantes entendam a IA, seus impactos éticos e saibam como mitigá-los.
A IA é uma tecnologia de propósito geral que afeta todas as áreas da vida (economia, política, meio ambiente e cultura) e, por isso, já está presente no cotidiano dos estudantes, independentemente de a instituição de ensino abordar o tema. Dessa forma, educadores precisam abraçar essa discussão com urgência, pois não se trata de uma opção. Nesse contexto, cabe à instituição de ensino preparar os estudantes não para atuarem como engenheiros de comandos, mas para identificar onde a IA está presente, compreender seu funcionamento e mitigar seus impactos éticos.
Por mais que o ritmo da educação seja diferente daquele do campo da tecnologia, o especialista recomenda que educadores tentem focar no presente. “Quando pensamos na transformação que a inteligência artificial vai causar nos ciclos de ensino, é comum sentirmos ansiedade para avançar além do nosso tempo”, disse. “Embora o impacto seja significativo, não precisamos antecipá-lo completamente agora. Se estivermos preparados para os desafios atuais, estaremos também preparados para o futuro”.
Com isso, argumenta, conseguimos evitar com mais facilidade a ansiedade e a sensação de incompetência geradas pela tentativa de prever todos os impactos da inteligência artificial. O que fazer, então? Um olhar voltado para o presente, alicerçado em dados e pesquisas é o que o especialista recomenda.
O “Seminário IA na educação básica: construindo referenciais nacionais” é transmitido pelo canal do MEC no YouTube
A versão anterior deste texto informava 5 Ps contidos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O correto são 3. Os outros dois Ps são sugestões da especialista Giselle Santos.
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