Há uma semana, Márcio Heleno Oliveira, de 63 anos, morreu após passar seis dias internado na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Santa Luzia. Ele aguardava transferência para um leito de UTI. Márcio conseguiu uma liminar concedida pela justiça. O documento, assinado no dia 13 de julho, previa que o paciente fosse transferido no prazo máximo de 24 horas. Márcio morreu três dias depois, ou seja, 48 horas após o vencimento do prazo estipulado na liminar, sem ser transferido, sem receber os cuidados intensivos de que precisava. Márcio deixou esposa, dois filhos e três netos.
O caso de Márcio não é único. A Comarca de Juiz de Fora, que abrange, além do município, as cidades de Chácara e Coronel Pacheco, além dos distritos de Rosário de Minas, Sarandira e Torreões, lidera o ranking com maior número de pedidos de liminares judiciais relacionadas à internação, transferência hospitalar e leitos de UCI e UTI no período de janeiro de 2020 até junho de 2025 em Minas Gerais. Ao todo, Juiz de Fora é responsável por 2.101 pedidos dos 12.235 do Estado, representando 17% do total.
No recorte que considera os pedidos de liminares que citam internação ou transferência hospitalar, a comarca local responde por 1.895 requerimentos, mais do que as outras quatro comarcas com maior demanda: Belo Horizonte (529); Teófilo Otoni (429); Conselheiro Lafaiete (333); e Betim (329). Somando os pedidos dessas quatro cidades, são 1620 processos, número ainda inferior ao total de Juiz de Fora.
Na comparação com as três maiores cidades do estado no quesito população, que, segundo o Censo IBGE de 2022, eram BH, Uberlândia e Contagem, o resultado é ainda mais expressivo: as três, juntas, somam 786 pedidos de liminar, também considerando internações ou transferências hospitalares. O número que não chega nem a metade das movimentações da Comarca de Juiz de Fora, representando apenas 41,5% do total de pedidos da cidade da Zona da Mata. Expandindo para as dez maiores cidades, Juiz de Fora ainda fica na liderança do ranking. A soma do número de pedidos nas outras nove cidades é 1.656, número que corresponde apenas a 87,4% dos pedidos da comarca local.

‘Judicialização cresce quando a estrutura de saúde falha’
Segundo Willian Corrêa, presidente da Comissão de Direito Médico, Saúde e Bioética da OAB/JF, “a judicialização cresce quando a estrutura de saúde falha. E o Judiciário se torna o último recurso para garantir um direito básico”. Ele vê o cenário com preocupação. “O número elevado, quando comparado ao de outras cidades, revela uma falha estrutural na garantia do direito à saúde pela gestão municipal” e, segundo ele, expõe a ineficiência do planejamento público.
Para o professor Bruno Stigert, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o volume de liminares está diretamente relacionado ao papel de Juiz de Fora como cidade polo no atendimento hospitalar da região. “Essa sobrecarga gera, consequentemente, uma demanda maior no Judiciário, pressionando o aparelho para que ele atenda essas demandas.” Ele lembra que o artigo 6º da Constituição estabelece o direito à saúde como fundamental e subjetivo, o que permite ao cidadão exigir judicialmente o que não foi garantido administrativamente.
Dos 1.895 pedidos de liminar, considerando internação ou transferência hospitalar, ao menos 1.563 ou 82,5% tiveram como resultado a concessão em parte ou total da antecipação de tutela ou da medida liminar. Dos 1895 processos, ao menos 1.827 citam especificamente o Município de Juiz de Fora como uma das partes.
Tratamento ou cuidado intensivos
O número de pedidos de liminar que citam Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) ou Unidades de Cuidado Intensivo (UCI) também é alto na comarca local. Juiz de Fora reúne 206 movimentações relacionadas. Ao todo, 161 pedidos foram atendidos total ou parcialmente, o que corresponde a 78% do total. Em comparação, Belo Horizonte, capital do estado e comarca com maior movimentação na unidade federativa, possui 122 pedidos no mesmo período. Uberlândia possui 87 e Contagem, 17.
Em relação ao cumprimento das decisões, Bruno Stigert destaca que a prioridade deve ser encaminhar o paciente para unidades públicas ou conveniadas. Contudo, “em situações de risco de morte, o direito à vida deve prevalecer”, mesmo que isso implique transferência para um hospital privado sem convênio. Willian Côrrea reforça que “alegações administrativas, como ausência de convênio ou estrutura, não afastam o dever de cumprir a decisão judicial, especialmente quando está em jogo a vida e a saúde de uma pessoa”.
Consequências legais e éticas
Stigert ressalta que o descumprimento de liminares pode gerar consequências jurídicas nos âmbitos civil, administrativo e até penal. “Pode haver responsabilidade civil pelo descumprimento da decisão judicial, gerando o dever de indenizar por danos morais e materiais.” A responsabilização pode atingir o Estado de forma objetiva, mas também agentes públicos individualmente, por omissão ou prevaricação. A imposição de responsabilidade penal, no entanto, é a última ratio e pouco utilizada nos dias de hoje.”
A judicialização constante, na visão do professor, evidencia as limitações do sistema público. “A judicialização é uma consequência de um sistema público que tem suas deficiências”, afirma, apontando a necessidade de reformas estruturais e maior participação popular nos espaços de decisão sobre a saúde pública.
Para Willian Côrrea, a dependência do Judiciário representa “não apenas ineficiência administrativa, mas um grave risco à vida e à dignidade dos pacientes”. A OAB defende que a judicialização seja sempre o último recurso, após esgotadas todas as possibilidades administrativas. Segundo ele, a OAB entende que o direito à saúde, por força do artigo 196 da Constituição Federal, é um dever do Estado e um direito de todos, e a dignidade da pessoa humana deve prevalecer diante de qualquer limitação burocrática.
Segundo Stigert, “o mínimo existencial deve ser garantido independentemente da situação orçamentária do Estado”. Ele explica que a garantia desse direito fundamental será sempre balizada por um critério que relaciona o mínimo existencial com a reserva do possível. O “mínimo existencial” é a identificação daquilo que é minimamente necessário para a pessoa viver com dignidade. Para ele, nos casos de internação, em casos que chegam à judicialização, são situações de mínimo existencial, ou seja, “risco de morte, de irreversibilidade de uma doença ou algo grave. O mínimo existencial é garantido a todos, independentemente da situação”.
Já a reserva do possível diz respeito às condições orçamentárias que o Estado possui para efetivar aquele direito. O direito à saúde é um direito fundamental, qualquer cidadão pode requerer ao Poder Público a qualquer momento, independentemente de classe social ou econômica. Esse direito, porém, vai ser efetivado, a priori, na medida da disponibilidade orçamentária, chamada de reserva do possível. Stigert explica também que a reserva do possível não poderá ser alegada como barreira para a efetivação de um direito fundamental “quando o mínimo existencial estiver em risco”. Ou seja, a chamada “reserva do possível”, embora importante, não pode ser utilizada para justificar omissão estatal diante de situações de risco grave à saúde.
O que diz a Prefeitura
Procurada, a Prefeitura de Juiz de Fora justificou o volume de judicializações afirmando que a cidade atende a uma região “com mais de 2 milhões de habitantes” e que, “entre janeiro e maio de 2025, a central municipal realizou 21 mil transferências”. Segundo a Secretaria de Saúde, apenas 0,3% das transferências para UTI partiram de decisões judiciais.
Sobre os casos em que o serviço necessário para atendimento do paciente não está disponível na rede SUS em Juiz de Fora, a PJF afirmou que segue a “norma estabelecida pelo Ministério da Saúde”, que determina a procura por vaga dentro da rede estadual e que, somente após essa etapa, há a contratação de leito em hospital da rede privada. Segundo o Executivo municipal, no histórico recente, isso aconteceu apenas uma única vez.
Ainda de acordo com a Secretaria de Saúde, todas as judicializações são cumpridas dentro do prazo estipulado em juízo e o cumprimento dessas determinações ocorre tanto para as expedidas pela Comarca de Juiz de Fora como para as definidas em outras comarcas e municípios.