Quem nunca ouviu a frase “Não contavam com a minha astúcia!” ou passou a tarde assistindo ao Chapolin Colorado na TV? Criado pelo ator mexicano Roberto Gómez Bolaños, o programa conquista gerações brasileiras desde os anos 1980 e continua no ar (atualmente na GloboPlay, na Netflix e em episódios esporádicos no SBT). Boa parte dos episódios está disponível no YouTube.
Que tal transformar este seriado que todos conhecem em um recurso didático, utilizando-o para ensinar as habilidades da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) nas aulas de História? Essa é a proposta do projeto “Não contavam com a minha astúcia! – A História através do Chapolin”, que realizei com a turma do 8º ano na Escola Municipal Zilma Thibes Mello, em Iperó (SP).
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O ponto de intersecção entre todos os objetivos foi a escolha dos episódios. Eu precisava de um conteúdo que pudesse ser analisado e servisse como eixo central das atividades. A turma escolheu o programa, que se tornou base para as discussões e produções realizadas em 12 aulas, alinhadas aos seguintes pontos da BNCC:
- (EF08HI04) identificar e relacionar os processos da Revolução Francesa e seus desdobramentos na Europa e no mundo;
- (EF08HI06) aplicar os conceitos de Estado, nação, território, governo e país para compreender conflitos e tensões;
- (EF08HI25) caracterizar e contextualizar aspectos das relações entre os Estados Unidos da América e a América Latina no século 19; e
- (EF08HI27) identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.
As atividades foram além da análise do contexto histórico apresentado pela série. Mesmo com poucos recursos na escola, conseguimos usar o celular de forma pedagógica em sala de aula, permitindo que os alunos pesquisassem e acessassem ferramentas de IA (inteligencia artificial) capazes de simular o personagem, respondendo às dúvidas dos estudantes. Tudo está reunido no meu blog, inclusive os vídeos dos episódios analisados.
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O início: diagnóstico e planejamento
O projeto surgiu a partir de três observações feitas no início do ano letivo de 2025. O principal fator foi uma avaliação diagnóstica realizada para verificar as habilidades de leitura, interpretação e escrita dos estudantes. A avaliação partiu de um texto sobre a história da televisão, acompanhado de questões sobre o uso deste e de outros recursos tecnológicos em casa.
A iniciativa colocou em prática a Lei n.º 15.100, que entrou em vigor neste ano e restringe o uso de aparelhos em sala de aula, exceto para pesquisas sob orientação do professor. O projeto demonstra que é possível criar uma proposta viável pedagogicamente, que pode ser replicada por outros educadores em diferentes contextos de ensino pelo país.
Além disso, o projeto enfrentou o desafio de trabalhar com inteligência artificial junto aos alunos da rede pública, apesar das dificuldades estruturais da escola.
A sequência didática do projeto foi organizada em quatro partes:
- Diagnóstica
- Aulas expositivas e análise de documentos históricos: episódios do Chapolin
- IA automatizada: conversando com o Chapolin
- Produção de capas de revistas
Na primeira parte, realizamos a avaliação diagnóstica para verificar as habilidades de leitura, interpretação e escrita, além de observar aspectos sociais relevantes para o estudo. O resultado revelou dificuldades nesses três aspectos. A avaliação foi elaborada com questões relacionadas ao universo televisivo, considerando a vulnerabilidade social da comunidade e a possibilidade de desenvolver um projeto envolvendo tecnologia, dado que todas as famílias tinham televisão e, em certa medida, celular.
Na avaliação diagnóstica, a maioria dos alunos mencionou conteúdos do YouTube. Buscando um material para centralizar as atividades, percebi que o Chapolin atendia a essa necessidade. Ao conversar com a turma, confirmei que todos conheciam o personagem e já haviam assistido a alguns episódios, o que consolidou a escolha.
Na segunda parte, apresentei um resumo da história da televisão por meio de slides e contei a trajetória de Roberto Gómez Bolaños (1929-2014), um dos comediantes mais respeitados do México. Criador e protagonista de El Chavo del Ocho (Chaves, no Brasil), El Chapulín Colorado (Chapolin Colorado, no Brasil) e Chespirito, todos exportados para mais de 50 países. Sua vida e carreira também se tornaram tema de livros e séries de ficção, como a recém-lançada ”Chespirito: Sem Querer Querendo”, que aborda sua história pessoal e o impacto de seus personagens na cultura popular.
Para conduzir essa etapa, defini uma estrutura fixa:
- Aula expositiva sobre o tema histórico do episódio
- Exibição do episódio
- Registro e conclusão da atividade
A série Chapolin, produzida originalmente entre 1973 e 1979 pela rede mexicana Televisa, está atualmente disponível por assinatura no Prime Video e no Globoplay desde julho de 2025. Nós estudamos cinco episódios disponíveis no YouTube.
- Napoleão Bonaparte (1974)
- O bandido (1973)
- O índio pele vermelha (1973)
- A fronteira (1975)
- E, livrai-nos também dos distraídos! (1973)
Cada análise de episódio foi feita a partir de uma ficha, para aprofundar o olhar dos alunos, com observações sobre roteiro, cenário, personagens, efeitos sonoros, figurino e maquiagem. As respostas eram registradas após a exibição.
É importante destacar que o significado de cada elemento era explorado na aula expositiva, mas sem aprofundamento excessivo, já que o tempo disponível não permitia. A atividade era concluída com uma questão que conectava o conteúdo da aula expositiva ao tema histórico do vídeo.
Sempre iniciava com uma explicação em slides e alguns vídeos, para contextualizar os conteúdos históricos no estudo do expansionismo do século 19. Os temas trabalhados foram: a expansão napoleônica, a expansão dos colonos para o oeste americano e o imperialismo dos Estados Unidos.
Desenvolvemos atividades sobre o imperialismo e expansionismo dos EUA, relacionando-os a temas contemporâneos, como a atuação e interferência norte-americana no mundo. Esse debate foi aprofundado com a análise do Chapolin e seu conflito com o personagem Super Sam, uma paródia do Superman com o bordão “Time is Money!” (“Tempo é dinheiro!”). Abordamos também a questão da fronteira, com Super Sam retratado como um invasor dos Estados Unidos dentro do México, fazendo uma crítica à expansão americana no contexto do faroeste.
O ponto de maior destaque foi a crítica à política externa dos EUA, que pode ser relacionada à política atual do presidente Donald Trump. Nesse caso, começamos observando as características do seriado, as reflexões de Bolaños sobre o papel de um herói e o uso do humor. Para introduzir o tema, utilizei um meme de Trump como Napoleão, que serviu como gancho para a sequência da análise.
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A terceira fase, “IA Automatizada: conversando com o Chapolin”, envolveu duas frentes tecnológicas e foi projetada para aprofundar e consolidar a aprendizagem. Os alunos realizaram duas atividades nesta etapa:
- responder questões conclusivas sobre os estudos feitos nas aulas e nos episódios. Os registros das aulas e dos episódios haviam sido anotados individualmente nos cadernos e, agora, em grupos formados por afinidade, eles deveriam responder às questões com a ajuda da IA automatizada do Chapolin (processo que descrevo a seguir);
- postar um comentário final sobre o trabalho no meu blog pessoal, “História Mirim”. blog. Reuni todo o material necessário em uma única postagem, para que a turma pudesse consultar em casa e nas aulas.
Superando os desafios estruturais
Como não temos laboratório de informática e contamos apenas com uma TV e um projetor multimídia, os alunos utilizaram seus próprios celulares e o meu computador pessoal para as atividades, respondendo à postagem no blog. Para os que não tinham celular, disponibilizei o meu computador.
O uso da IA automatizada foi o ponto principal da atividade e da experiência pedagógica. Fiz a programação do personagem Chapolin Colorado na plataforma n8n (para conectar diferentes aplicativos e serviços, automatizando tarefas repetitivas de forma visual) seguindo tutoriais do YouTube, com instruções para ajudar os alunos com dúvidas sobre os conteúdos de História, os episódios e a vida do autor.
Eles puderam conversar com o Chapolin, que os recebia com uma saudação típica e se despedia no mesmo tom. A partir das respostas compiladas da internet, cada grupo precisava interpretar as informações e responder ao questionário.
Um problema surgiu, descoberto apenas quando coloquei a programação em uso: como utilizei a versão gratuita do n8n, só poderia usá-la por alguns dias e em um único aparelho por vez. Para contornar, organizei um revezamento. Cada grupo tinha dez minutos para conversar com o Chapolin, passando em seguida para o grupo seguinte, até retornar ao inicial. Como havia também a tarefa de responder no blog e algumas questões podiam ser resolvidas com pesquisa no livro didático, mantive o revezamento de forma produtiva, sem deixar os alunos ociosos.
A produção final: capas de revista
Na conclusão do projeto, fizemos uma produção final para expor na nossa sala. É importante observar que nossa escola trabalha com salas-ambiente, e são os alunos que trocam de sala e não o professor. Portanto, todos os estudantes, de manhã e à tarde, passam por todas as salas em algum momento da semana.
Levei impressões em sulfite com os logotipos de algumas revistas famosas, inclusive dos Estados Unidos, como a Time, e de outros países, como a Vogue. Incluí também publicações nacionais: Aventuras na História, quadrinhos e a Caras.
A proposta era simples: os alunos deveriam criar capas apresentando o personagem Chapolin como destaque mundial, com manchetes escolhidas por eles, relacionadas aos episódios ou aos conteúdos históricos. O trabalho foi feito em grupos, com desenhos coloridos à mão, expostos na sequência.
Resultados e reflexões
Diante das carências da escola, um projeto como esse parecia impossível de ser realizado. No entanto, as atividades mostraram que é plenamente viável trabalhar temas atuais nas aulas de História, independentemente da realidade social.
A tecnologia teve papel importante nesse processo, tanto no uso dos celulares como recurso didático quanto na aplicação da inteligência artificial em sala de aula, comprovando que o modelo pode ser adaptado e replicado em diferentes contextos do país.
O projeto integrou a escola e as aulas aos debates contemporâneos de forma bem-sucedida, mobilizando e engajando os estudantes em atividades teóricas e práticas que enriqueceram o ensino de História, sem deixar de lado as discussões e os esforços da categoria por melhorias na educação.

Aílton Luiz Camargo
Professor das redes pública e privada há 19 anos. Doutorando em educação pela Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), mestre em história social e licenciado em História pela mesma universidade. @ailton.profjesus no Instagram
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