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22/07/2025

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O que acontece quando um diretor respeitado pela comunidade deixa uma escola


É impensável considerar uma escola como inovadora sem levar em conta a figura do diretor escolar. O mapeamento que fazemos há mais de 10 anos no Porvir, em busca de experiências de escolas que conseguem fazer a diferença para seus alunos, reiteradamente nos mostra que priorizar uma aproximação com a comunidade escolar e fazer com que o PPP (Projeto Político-Pedagógico) da escola responda a isso diuturnamente é algo raro. Isso porque uma boa gestão também implica comprar brigas – as boas brigas, aquelas que realmente importam. Seja para garantir uma aprendizagem que faça sentido, conectada com a realidade dos estudantes, seja para engajar professores e toda a equipe escolar em um propósito comum.

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Essa perspectiva contrasta fortemente com as intervenções autoritárias e descoladas da realidade escolar, como a retirada recente de 25 diretores de escolas municipais de São Paulo sem o devido diálogo com suas comunidades para um curso obrigatório de atualização. A SME (Secretaria Municipal de Educação) argumenta que a decisão de tirar os gestores do cargo para dedicação exclusiva— — havia sido tomada com base no desempenho das escolas nas avaliações de 2023 do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e do Idep (Índice de Desenvolvimento da Educação Paulistana). O afastamento foi revogado graças a pressão da comunidade escolar, sindicatos, defensoria e do ministério público, mas o modelo do curso ainda segue em negociação.

Esses instrumentos desconsideram a complexidade dos territórios e a diversidade das experiências escolares. O Ideb, por si só, não é suficiente para avaliar a qualidade da educação ofertada nas escolas. Ele mede apenas o desempenho dos estudantes em provas padronizadas de língua portuguesa e matemática, sem dar conta da complexidade dos conhecimentos envolvidos nem do contexto em que essas aprendizagens ocorrem.

Para surpresa de praticamente ninguém, a medida gerou protestos de alunos, professores e famílias, que denunciaram a interrupção de projetos pedagógicos consistentes e a falta de diálogo. Duas semanas após o anúncio das mudanças e uma semana após a divulgação do cronograma do curso destinado a gestores, é a própria gestão municipal que agora reconhece a necessidade de amenizar os ânimos, como escreve Ana Basílio, na Carta Capital. Curiosamente, entre os diretores afastados pela prefeitura, atitude classificada como “intervenção” pela comunidade escolar, é possível identificar facilmente casos de boas práticas.

Entre elas, dois destaques: Escola Municipal de Ensino Fundamental Caio Sérgio Pompeu de Toledo, que recebeu a honraria Salva de Prata da Câmara Municipal em 2023, e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Espaço de Bitita, que coleciona prêmios como Territórios Tomie Ohtake, do Instituto Tomie Ohtake, Criativos da Escola, do Instituto Alana, além de integrar o Programa das Escolas Associadas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Ambos os projetos educacionais refletem uma educação emancipadora, que só é possível ser construída a partir do momento em que se olha para os territórios e se permite que sejam parte das decisões, dos currículos e das práticas escolares. Quando consideramos as características, potencialidades e desigualdades que marcam essas comunidades, não há outra maneira de ser enquanto escola. São projetos construídos por pessoas, lideradas por gestores comprometidos, que agora estão sendo afastados.

Reconhecida internacionalmente pelo acolhimento aos estudantes imigrantes e suas famílias, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Espaço de Bitita levou oito anos para homenagear a escritora Carolina Maria de Jesus, a Bitita, em seu nome. Antes, o espaço, localizado no bairro do Canindé, onde a autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” morou, levava o nome de Infante Dom Henrique. “Ele era uma pessoa de família nobre portuguesa que organizou o tráfico de escravizados da África. A história forjou esse sujeito. Acredito que a escola não pode se calar, deve fazer um currículo que restabeleça o que deve ser lembrado”, afirmou o diretor Cláudio Marques da Silva Neto no Festival Encontro com o Porvir no ano passado, evento que ele classificou como um momento de saber socializado.

Rovena Rosa/Agência Brasil Crianças realizam projetos de ciências no pátio da antiga Escola Espaço de Bitita, em homenagem a escritora Carolina Maria de Jesus

Para o gestor, que recentemente foi condecorado como Cidadão Paulistano pela Câmara de Vereadores de São Paulo por sua contribuição à educação pública, não é possível pensar em uma educação sem refletir sobre o modelo de sociedade que aspiramos. “Precisamos pensar em que sociedade queremos no futuro e na escola que queremos para o futuro e, nesse sentido, precisamos olhar para a escola na perspectiva de seus territórios”, disse. Ele ressaltou que a escola deve olhar para os sujeitos, construir identidades e sensibilizar a todos para os dramas da humanidade. 

“A mediação das relações e a socialização escolar envolvem duas dimensões indissociáveis: educação e cultura. Foi na articulação minuciosa dessa interrelação que se teceu uma cultura de transição capaz de transformar uma realidade violenta, injusta e segregacionista em um ambiente educativo inclusivo, acolhedor e justo em que a diversidade é celebrada”, escreveu, em recente artigo publicado em nosso site, sobre o que faz o Espaço de Bitita ser referência nacional no acolhimento e respeito aos alunos de outros países.

Ao deixar a escola, esse diretor deixa uma comunidade sem rumo, perplexa com as orientações vindas da secretaria e temendo ter seu projeto construído a tantas mãos destruído por atitudes antidemocráticas.

Mais exemplos pelo país

A conexão intensa entre escola e território, tão bem consolidada no Espaço de Bitita, já foi tema de outras reportagens feitas em diferentes cidades aqui no Porvir. Outro exemplo foi a guinada no Colégio Estadual Professor José de Souza Marques, no Rio de Janeiro, após a chegada do diretor André Barroso. A transformação vivida pela escola mostra como o protagonismo estudantil e a gestão democrática podem reverter cenários de crise quando estão conectados ao território em que a escola está inserida. 

Em 2015, diante de uma ordem de despejo, o então diretor mobilizou estudantes, funcionários e a comunidade local em defesa da permanência da escola. Essa iniciativa resultou na desapropriação do prédio e consolidou o sentimento de pertencimento, mostrando que a escola, quando se reconhece como parte viva do território, ganha força para enfrentar desafios coletivamente.

A valorização dos espaços de escuta e representação estudantil, como o grêmio, contribuiu para construir uma escola alinhada às realidades, histórias e expectativas dos jovens da região. A gestão passou a incentivar a participação ativa dos estudantes na tomada de decisões e na construção de um ambiente mais acolhedor, inclusivo e representativo. A escuta ativa das vivências locais contribuiu não apenas para mudanças físicas, como a criação de salas maker, clube de ciências e uma biblioteca revitalizada, mas também para o fortalecimento de vínculos entre escola e comunidade, que resultaram em conquistas acadêmicas e culturais de grande impacto.

Mais recentemente, a Escola Municipal Professor Edson Pisani, localizada em Belo Horizonte e com perfil semelhante ao de outras instituições engajadas com a comunidade, ganhou notoriedade ao conquistar o prêmio internacional Melhores Escolas do Mundo por sua forte integração com o território. Situada no Aglomerado da Serra, uma das maiores comunidades do Brasil, com mais de 120 mil habitantes, a escola atua há mais de três décadas como agente de transformação social.

Sob a liderança da diretora Eleusa Fiuza, a escola estabelece uma articulação constante com estudantes, famílias e moradores da região. Esse trabalho resultou em parcerias com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que possibilitaram iniciativas como o mapeamento de problemas relacionados à água e a criação de uma linha de ônibus ligando a comunidade ao metrô.

Na década de 2000, durante as obras do programa Vila Viva, a comunidade enfrentou o risco de remoções devido ao alargamento de uma via. A escola mobilizou a população, articulou-se com os técnicos do projeto e contou com o apoio das faculdades de arquitetura e direito da UFMG. Essa ação conjunta foi decisiva para garantir que nenhuma família fosse retirada de sua residência.

Acolhimento e conexão

Da mesma forma, São Paulo tem outros dois casos clássicos. Quem conhece a rede pública municipal certamente já ouviu falar da história do CIEJA Campo Limpo, um exemplo vivo de como uma escola pública pode se transformar quando está profundamente conectada ao seu território. Sob a liderança da educadora Eda Luiz, o espaço rompeu com estruturas tradicionais da EJA (Educação de Jovens e Adultos). Mais do que ensinar a ler e escrever, a escola se reinventou como um centro de acolhimento, escuta e protagonismo.

Inspirada pelos conceitos defendidos por Paulo Freire, Dona Eda construiu, com base nas demandas e vivências da comunidade, uma proposta pedagógica inovadora que valoriza o conhecimento prévio dos alunos e cria vínculos reais entre escola, estudantes e o entorno. Hoje dirigida por Diego Elias Santana Duarte, a escola segue pulsando com o bairro, com biblioteca aberta à comunidade, grafites que contam histórias locais e uma gestão que prioriza relações humanas. 

Essa conexão com o território não apenas fortaleceu o pertencimento dos estudantes, mas também ampliou o alcance social do CIEJA. Ao respeitar os tempos, os desafios e os saberes dos jovens e adultos da região, a escola transformou trajetórias de vida. Um exemplo marcante é o de Anderson Odorico, o “Alemão”, ex-aluno que, acolhido por Dona Eda nos momentos mais difíceis, hoje lidera um projeto social que atende 150 crianças da periferia. Sua história foi contada na série de perfis publicados em 2022, quando o Porvir completava 10 anos.

A experiência da EMEF Presidente Campos Salles, também em São Paulo, consagra-se por apresentar um projeto de escola que constrói sua trajetória em diálogo profundo com o território e seus sujeitos. Conhecida como a “república das crianças”, a gestão compartilhada e os salões de aprendizagem são frutos de um projeto construído coletivamente ao longo de anos, com base na escuta, no pertencimento e na confiança mútua.

Quando os alunos participam ativamente das decisões e a comunidade é valorizada como parte do processo educativo, a escola se torna um espaço vivo, que educa para a cidadania e fortalece vínculos sociais.

Em escolas como a Campos Salles, onde o diretor Braz Nogueira Rodrigues atuou por 22 anos com forte enraizamento comunitário, fica evidente que não é possível separar gestão escolar de território, muito menos ignorar os laços construídos com o tempo.

A construção de uma educação democrática exige tempo, confiança e envolvimento contínuo. Quando decisões são impostas de cima para baixo, sem respeito aos processos participativos já consolidados, enfraquece-se não apenas a gestão, mas o próprio sentido da escola pública como espaço de construção coletiva. A Campos Salles mostra que outro caminho é possível – um caminho em que cada estudante, educador e morador se sinta parte da escola, e em que decisões se baseiem no diálogo, não em decretos. Desconsiderar isso é comprometer avanços duramente conquistados.

Hoje, 13 anos depois, ao olhar para o que acontece na rede municipal de São Paulo, onde índices baseados em provas que se recusam a enxergar a realidade dessas escolas são o instrumento para aferir a qualidade de ensino, fica mais fácil entender por que educadores que rompem com o sistema conseguem levar a seus estudantes e comunidades maneiras de ensinar que transcendem os muros escolares e impactam diretamente o desenvolvimento humano.

Em meio a tantos desafios enfrentados pela educação pública brasileira, o Porvir segue empenhado em identificar e divulgar boas práticas em escolas, especialmente aquelas em escolas públicas. Que essas experiências sigam inspirando não apenas nossos leitores, mas também os governos – para que escolham apoiar e fortalecer quem faz a diferença na educação, em vez de interromper caminhos de transformação.

* Vinícius de Oliveira é diretor editorial do Porvir. Este artigo expressa o posicionamento do Porvir sobre as contestadas mudanças propostas pela prefeitura de SP para 25 escolas da rede.






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