A série britânica “Adolescência”, da Netflix, chamou a atenção de mais de 114 milhões de espectadores ao mostrar como jovens podem ser atraídos por discursos de ódio e violência e fez soar um alerta tanto para famílias e educadores atentos a comportamentos online, quanto para quem desconhecia o problema.
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Essa preocupação também alcançou o contexto escolar, onde têm origem muitas das situações de bullying e violência cometidas online. Por vezes, é nesse espaço que atos violentos se concretizam. Vanessa Cavalieri, juíza da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, avalia que adolescentes envolvidos em tais casos podem ter sofrido na escola e terem tido esse sofrimento invisibilizado.
“A gente só consegue enxergar o adolescente como sociedade quando ele deixa de ser vítima e se torna agressor”, afirmou a juíza em palestra no 6º Congresso Socioemocional LIV, realizado nesta quarta-feira (21) , no Rio de Janeiro (RJ).
Uma das investigações que ela acompanhou e que mais a impressionou foi de um jovem de 16 anos que planejou um atentado contra a escola onde estudava. Ao conversar com o garoto, a justificativa dada por ele é de que estaria sendo “obrigado a fazer isso” e que ouvia vozes pedindo que ele atacasse os colegas e a si próprio.
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Ao investigar mais a fundo a vida do estudante, identificou que ele já havia apresentado esses sinais desde a infância, quando, aos quatro anos, tentou incendiar a casa da irmã mais velha supostamente a pedido das vozes.
“O fato é que ele passou 12 anos na escola ouvindo vozes. Nem a família, nem a escola, nem o sistema de saúde viu esse jovem em sofrimento. A primeira vez em que ele foi visto foi quando pegou uma faca e tentou matar os colegas. Da escola, ele saiu direto para uma internação psiquiátrica compulsória”, contou Vanessa. O jovem ficou um período em atendimento psicológico, contudo, sem precisar ficar encarcerado.
“O problema dele não era de falta de punição ou de necessidade de uma medida socioeducativa. Ele precisava ser visto e ter a sua saúde mental tratada”, destacou.
Coisa de adulto e coisa de adolescente
Além da atenção à saúde mental de crianças, adolescentes e jovens, é necessário observar os conteúdos que eles acessam online. Como destacou a pesquisadora Telma Vinha, coordenadora do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mesmo adolescentes sem tendências extremistas estão expostos a conteúdos de violência e, por isso, é importante que tenham algum tipo de acompanhamento.
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Neste sentido, Fernanda Costa Moura, psicanalista e pesquisadora dos efeitos da ciência sobre a adolescência contemporânea, afirma que os desafios vividos pelos adolescentes são um problema de todos.
“Não é um problema somente da escola, do Estado, das famílias ou das crianças. Estamos todos juntos”, disse a pesquisadora durante o evento. Para ela, existem consequências e responsabilidades diferentes para crianças e adultos, contudo, todos acabam afetados pelo modo de vida atual, que tem relações muito centradas na tecnologia e na internet.
“Quando estamos diante das tecnologias – que já fazem parte da nossa vida – há uma certa incompletude da linguagem. De alguma maneira, o que nos faz humanos é esse engasgo, o encontro com o outro, o atrito, e é muito forte que estejamos sendo levados para um mundo onde essa incompletude quase não pode acontecer”, destacou.
Desajustes contemporâneos
Ser criança e adolescente na atualidade tem seus desafios únicos. Durante participação no congresso LIV, Daniel Becker, pediatra e ativista pelas infâncias, destacou que apesar de existirem sofrimentos distintos para meninos e meninas, há situações universais.
O médico aponta que há uma perda do mundo real e a substituição desse mundo por conteúdos inapropriados. Com o avanço da internet e das redes sociais – assim como a mudança na constituição dos espaços urbanos –, houve também um afastamento do brincar livre e do contato com a natureza.
A publicação “Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de Crianças e Adolescentes”, desenvolvida pelo Instituto Alana, demonstra como o convívio com a natureza durante essas fases da vida melhora desde o controle de doenças crônicas, como diabetes e asma, até o favorecimento do desenvolvimento neuropsicomotor e o bem-estar mental.
“Se fôssemos colocar os 5 milhões de anos da história da humanidade em 12 horas, a Revolução Industrial, que fez a gente sentar e ficar confinado em ambientes fechados, surgiu dois segundos antes do final desse período. As telas surgiram há 0,015 segundo [seguindo essa lógica]”, ilustra o pediatra. Essa escala temporal revela o abismo entre a biologia ancestral e o ritmo atual de mudanças tecnológicas.
Para ele, essa transformação radical em período tão curto provoca um desajuste. “Nosso corpo não vai se adaptar a uma condição tão radicalmente diferente da qual a humanidade viveu durante milhões de anos, sempre em contato com a luz solar, com a natureza, com o movimento, interagindo com o outro”, destacou.
A proposta dele é investir na redução do tempo de telas e no resgate do contato com a natureza.
Esta também é a visão do psicólogo social Jonathan Haidt, autor do livro “A geração ansiosa”, sucesso mundial de vendas e público. Haidt argumenta que, principalmente as infâncias, estão perdendo a característica de autonomia e descoberta, com crianças que passam mais tempo trancadas em casa diante das telas do que brincando nos parques.
Haidt sugere aproveitar os espaços verdes escolares como antídoto ao isolamento digital, ainda que entenda que esse seja um desafio para as escolas brasileiras, muitas sem espaços arborizados.
Ele é uma das principais vozes defensoras da redução drástica do uso de smartphones por crianças e adolescentes. O psicólogo constituiu fama ao propagar que o uso de telefones e redes sociais é o que tem mudado o comportamento de crianças e jovens, deixando-os mais solitários, depressivos e ansiosos.
Em sua participação no evento de LIV, o autor elogiou a Lei 15.100/2025 que restringiu o uso de celulares e dispositivos móveis em escolas durante o horário de aulas e intervalos..
Declínio cognitivo na era digital
“Ainda não temos experimentos controlados realmente robustos para provar exatamente o que está acontecendo, mas são muitos os relatos de escolas sobre as mudanças observadas antes e depois da implementação das medidas. E, até agora, não ouvi falar de nenhuma escola que tenha dito que as coisas pioraram. Não houve nenhum relato de escola que tenha voltado atrás e dito: ‘Isso não funcionou. Era melhor deixar os alunos com os celulares’.”, disse.
Em sua sequência de alertas, Haidt recorreu a uma reportagem do site Financial Times, que apontou que pessoas de todas as faixas etárias estão perdendo habilidades de raciocínio, concentração e resolução de problemas. Além disso, jovens de todo o mundo apresentam diminuição na capacidade de prestar atenção.

Esses sintomas estariam associados aos hábitos de consumo contemporâneos, com crianças e adolescentes gastando mais tempo vendo vídeos curtos e conteúdos rápidos. Paralelamente a isso, o cenário também seria a causa da redução dos níveis de leitura entre os mais jovens.
“À medida que a ‘dieta informacional’ das pessoas muda de textos mais longos e complexos para trechos curtos, e do texto para o vídeo, os níveis de letramento efetivo tendem a cair”, explicou o jornalista do Financial Times, John Burn-Murdoch.
“Ter inteligência artificial vai facilitar muito fazer praticamente tudo. E isso é ótimo para os adultos. Mas as crianças precisam fazer coisas difíceis milhares e milhares de vezes. A última coisa que queremos é transformar tudo em um jogo fácil, ao alcance de um clique. Ah, tem lição de casa? Usa o computador, usa a IA. Está se sentindo sozinho? Em breve teremos robôs para isso. Seu quarto está bagunçado? Deixe que os robôs arrumem”, refletiu Jonathan.
Saúde mental dos professores
Os tempos modernos e avanços da tecnologia, assim como os contextos de violência sofridos no ambiente escolar também afetam os professores. Como dito anteriormente pela psicanalista Fernanda Costa Moura, trata-se de um “desafio coletivo” que exige ação coordenada.
“Se quisermos melhorar a educação, é fundamental melhorar a qualidade de vida e a saúde mental dos professores”, afirmou de maneira enfática Jonathan em resposta à jornalista Poliana Abritta, no painel que encerrou o evento.
Currículo de Cidadania Digital
Durante o Congresso, o LIV também divulgou o lançamento do Currículo de Cidadania Digital. Construído a partir de referências internacionais, a proposta é, de acordo com Joana London, diretora Pedagógica do LIV, trazer questões que são fundamentais para a atualidade, tanto na vida online quanto offline.
“Diante de um cenário que nos assusta, é compreensível que a tendência seja criar uma proposta pedagógica que proteja os alunos dessas plataformas. Mas, não nos esqueçamos de que: 1 – essa é a realidade do mundo! e não podemos ignorar; 2 – a tecnologia pode sim contribuir para aprendizagem e conexões afetivas com o mundo quando bem utilizadas”, disse durante apresentação do currículo no Congresso LIV.
O projeto vai se estruturar em cinco eixos temáticos: saúde mental e bem-estar, convivências e relações virtuais, autoexpressão e identidades digitais, educação midiática, privacidade e segurança
“Pensar um currículo de cidadania digital na escola e dentro de um programa socioemocional é compreender que a relação jovem – tela; criança- tela; eu e tela, não é uma relação individual. Quando estamos diante desses dispositivos não estamos sozinhos. Existe um universo que está ali, programando, influenciando, vigiando, se conectando e conversando”, destacou.
* O jornalista viajou ao evento a convite do LIV
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